Thursday, December 27, 2012

 

[Conto] Pare Enquanto Está Ganhando, Dr. Tortorelli

por Marcelo Gilli



“Meu filho, nasceste com o Mal em tuas entranhas, e é esse Mal que te leva a não te aquietares nunca em um só lugar e a te sentires bem em lugares onde és um estranho” -- disse com sua voz tonitruante o velho Rungnar. E continuou, agora mais perplexo que enraivecido: “Nós trolls temos vivido há séculos nas cavernas distantes, mas tu sentes o chamado das florestas, com seus labirintos infernais.” Borgnar, respeitoso mas irredutível, replicou-lhe: “Pai, lembra-te que o bicho homem é inimigo de nossa raça, e que devemos, sempre que pudermos, lançar obstáculos em seu caminho, e queimar suas plantações, e atar os seus pés para que tropece. Assim deixaremos um rastro no mundo e far-nos-emos únicos.”

S.L.L. Tørtør: “O troll Borgnar”



O Professor Simão Tortorelli deu um grande suspiro de alívio ao ler as palavras “mensagem enviada” na tela de seu computador. Em alguns segundos seu último artigo estaria na caixa de entrada de um esforçado acadêmico encarregado de sua avaliação para a inclusão no congresso sobre “Ontologia do Mal”, a ser realizado em Praga, dali a alguns meses. Estava bem menos confiante na sua aceitação do que estivera quando submetera seus artigos precedentes. Este tinha sido o trecho mais acidentado de sua até então tranquilamente produtiva carreira de pesquisador. Longos intervalos de falta de inspiração haviam interrompido por várias vezes o trabalho, e severas dúvidas sobre as perspectivas futuras de sua carreira nesse ramo do pensamento assaltavam-no com intensidade algo alarmante.

Levantou-se da cadeira, grampeou a cópia em papel que acabara de imprimir para uso próprio, e saiu para tomar um café na cantina. Seus passos sonoros no corredor denunciavam sua estatura elevada e seu peso que começava a sair de controle mas ainda não impedia sua agilidade natural nem comprometia os resquícios de vaidade herdados daquele jovem bem apessoado que fora há uma década.

Tomou seu café sozinho, olhando para um lado e outro à procura de algum conhecido com quem pudesse conversar. Sempre que enviava um artigo, sentia essa comichão de falar sobre ele; o fato de não haver mais possibilidade de correções anulava, por um lado, qualquer propósito imediatamente prático da conversa, mas dava, por outro, um caráter mais livre e lúdico a ela, ajudado ainda pela certeza de que ninguém mais poderia plagiá-lo. Não teve sorte essa vez: ninguém apareceu, e em verdade, por motivos fortuitos, não teve oportunidade de falar com ninguém sobre o trabalho até o momento da apresentação.

•••

O Centro de Convenções da Universidade de Praga estava muito movimentado naquela manhã de segunda-feira. O Dr. Tortorelli, um pouco mais nervoso que o seu habitual nessas ocasiões, preparou-se para subir ao estande de apresentações. Quase tropeçou na escadinha, apoiando-se a tempo numa assistente que estava logo à sua frente na entrada do estande, uma loira bonita que lhe deu um sorriso confortador. Suando muito, iniciou sua exposição. Parecia-lhe de repente que falava sem convicção, que havia cavado um nicho para si mesmo e que o que fazia era simplesmente assegurar sua permanência nele.

A posição defendida em seu artigo era uma espécie de equilibrismo conceitual, uma solução de compromisso: negava razão, por um lado, aos que defendiam um “estatuto absoluto” ao Mal, mas não advogava “a idéia socrática de que o Mal não possui realidade própria e é apenas fruto de uma situação de ignorância” (citando diretamente de seu artigo). “É necessário por razões éticas admitir a existência do Mal e até mesmo delimitá-lo, muito embora não caiba investigar e nem mesmo postular sua essência”, categoricamente afirmava. A conclusão, escrita a duras penas, e sobre a qual sentia-se sumamente inseguro, era de que, “ao contrário do que afirmam as teologias tradicionais, não é o Mal mas sim o Bem que contagia o Universo, possuindo a tendência irreprimível de ubiquidade”. Terminou sua exposição e passou, com certa apreensão, às perguntas dos presentes. Um jovem exibindo um malcuidado cavanhaque e vestido pessimamente levantou a mão e pediu-lhe que elaborasse um pouco a tese da conclusão. Talvez por uma reação paradoxal ao seu desespero crescente, o palestrante foi tomado de uma súbita onda de autoconfiança. Pontificou que não há evento em uma história individual ou coletiva que não seja, quando corretamente compreendido, um Bem ou a causa de um Bem. Desafiadoramente, pediu ao autor da pergunta, ou mesmo a qualquer membro do auditório, que lhe desse o exemplo mais extremo de Mal que lhe viesse à mente. O jovem coçou a cabeça e, um tanto titubeante, arriscou: “A Segunda Guerra Mundial”. Tortorelli olhou para ele como se lhe perguntasse: “Não consegue pensar em nada pior que isso?”, mas respondeu simplesmente: “o transistor, que nasceu das pesquisas militares, depois evoluiu para o circuito integrado, e depois para o chip, e todo mundo sabe o resto da história”. Algumas pessoas na audiência sorriram, Tortorelli relaxou um pouco. Um homem consideravelmente mais idoso que a maioria presente, sentado ao fundo do auditório, pronunciou uma única palavra: “Holocausto”. Tortorelli, a princípio um pouco desnorteado, pensou durante uns vinte segundos e respondeu: “O Estado de Israel”. Houve uma reação mista, alguém rindo disse com ironia: “Ah, e isso foi bom.”, e se calou em seguida como se estivesse subitamente arrependido e receasse polemizar; outros fecharam a cara, Tortorelli sentiu que entrava em terreno movediço. De repente, um homem mais ou menos de sua idade, de pele muito branca e olhos muito claros, disse: “A escravidão dos negros”. O palestrante sentiu que aquilo já estava indo longe demais e era melhor parar enquanto estava ganhando, ou, na pior das hipóteses, perdendo pouco; a tentação de provar o quanto era brilhante, no entanto, era grande, e prosseguiu: “Bem, não sei se algo tão extenso temporalmente e variado em seus aspectos pode ser analisado como um evento único, mas imagino que por causa da escravidão um segmento das etnias africanas, em vez de ser miserável e viver com poucas perspectivas na África, é próspero nos Estados Unidos, e um outro segmento dessas etnias, em países como o Brasil ou os próprios Estados Unidos, não é tão próspero mas tem algumas perspectivas de melhora que não teria no continente de seus ancestrais. E acho que infelizmente vou ter que interromper aqui minha apresentação, agradecendo a todos vocês pelo estimulante debate.” No táxi para o aeroporto, tinha a cabeça doendo e pensamentos desencontrados; a polêmica da qual tinha sido parte lhe causava desconforto e excitação simultaneamente. Involuntariamente fantasiou, durante o longo trajeto, sobre ramificações hipotéticas do debate e exemplos novos lhe vinham à mente (“estupro e gravidez” era o seu preferido); uma parte de si, com alguma perversidade, desejava ter ficado e polemizado mais e mais, até que o caos se instaurasse no recinto do auditório. Imaginava sua saída triunfal; desceria as escadas, agora com segurança e, ao passar pela bela loira que lhe sorrira, convidá-la-ia para um drinque, e ela, naturalmente, aceitaria, extasiada. Exausto, dormiu no avião, tão profundamente quanto possível num assento de classe econômica.

•••

O Professor Tortorelli não escrevia nada há dois meses. Sentia-se esgotado interiormente. Olhava-se no espelho e constatava os efeitos das muitas noites que vinha passando sem dormir. “Simão, tu és um impostor”, dizia à sua imagem refletida. “Uma fraude, doutorzinho, isso é o que és.” Não sabia por quê, a segunda pessoa gramatical caía particularmente bem nessas auto-vituperações.

Precisava encontrar um campo novo para si, algo que o estimulasse. Era um risco, pois havia feito um nome como “ontólogo do mal”, e de certa forma era mais seguro continuar produzindo pequenas variações de seus antigos artigos, semi-repetições que não cheiravam nem fediam, mas tinham uma platéia cativa, por assim dizer, do que aventurar-se por caminhos pouco explorados. Uma série de acontecimentos fortuitos, somada à sua constante atenção à procura de algo novo, lhe esboçaram ideias que valia a pena explorar. Ideias que o levavam a regiões intelectuais que pareciam ter muito pouco a ver com seu trabalho até então.

Viria em boa hora essa renovação, a bem dizer. Sua vida extra-acadêmica, que já estava um tanto estagnada antes do congresso em Praga, tomou um rumo para pior após o mesmo. Sua companheira de três anos surpreendeu-lhe com a proposta de não morarem mais juntos, e o que se anunciava como uma proposta era obviamente uma decisão já tomada, e essa decisão, como veio a saber pouquíssimo tempo depois, não se referia a um simples reposicionamento geográfico, mas a um rompimento total e definitivo. Desconsolado, Simão, agora bebendo mais do que o costume, escarnecia de si junto a seu espelho favorito: “Aí, meu amigo, encontra o lado bom disso.”

Assim, foi em meio a essa situação existencial desanimadora que Simão Tortorelli começou a pensar seriamente no problema da falta de sentido, que para ele estava intimamente relacionado ao da incompreensão. “Se um texto não é compreendido por uma única pessoa, não importa quão claro seja para as demais, essa incompreensão solitária merece ser estudada”, declara em um de seus artigos iniciais. Em outro afirma: “Se um texto não é compreendido por ninguém em um determinado instante da história, como chegar sistematicamente a um veredito sobre sua incompreensibilidade?” Essas e outras questões semelhantes eram objeto de sua atenção; chegou a cunhar uma denominação para o conjunto de questões que vinha examinando: assemiologia.

Seu primeiro artigo sobre o assunto era bastante introdutório e não apresentava muitas respostas, embora tivesse muitas perguntas. Achou que era suficientemente original para que fosse apresentado em um congresso não muito ambicioso a ser realizado em Budapeste em novembro próximo. Estava mais cauteloso nessa sua nova fase. Não sabia se agüentaria um fracasso em seu estado psicológico atual. Resolveu estudar um pouco de húngaro nos poucos meses que o separavam do congresso; depois do fiasco em Praga, esperava estabelecer algum contato com a população feminina local em sua próxima excursão turístico-acadêmica.

•••

Budapeste pareceu ao Dr. Tortorelli uma cidade pelo menos tão bela quanto Praga. Decerto seu estado psicológico recuperado era responsável por alguma alteração em sua percepção ambiental, de modo que suas opiniões de agora e de antes não podiam ser objetivamente comparadas. Chegou ao hotel, tomou uma forte ducha. Agora duchava-se mais frequentemente; dir-se-ia que tentava limpar de si mesmo alguma sujeira recalcitrante, talvez seu passado.

Sentia-se mais feliz em sua nova área de estudos. Era de certo modo um alívio desligar-se de temas tão pesados como os que anteriormente o ocupavam, e ocupar-se de outros que dir-se-ia eticamente irrelevantes, ao menos ao que um primeiro exame indicava. Também notou que seus colegas de congresso agora formavam uma comunidade mais equilibrada em relação à participação dos sexos; ou seja, que havia mais mulheres entre eles. Isso provavelmente lhe faria bem, embora nenhuma das que tinha visto durante o primeiro dia do congresso lhe tivesse atraído de maneira especial. De qualquer modo, havia as recepcionistas, e assistentes de vários tipos, que costumavam ser muito interessantes (lembrou-se da loira em Praga).

O segundo dia era quando apresentaria o trabalho. Chegou bem cedo, pois era uma das primeiras apresentações. Dessa vez, tudo correu sem sobressaltos nem nervosismo, as perguntas foram fáceis de responder, nada de polêmico, o tema não dava muita margem a esse tipo de coisa. Talvez o público lhe estivesse tratando um pouco condescendentemente demais; imaginou que talvez sua crise depressiva recente tivesse chegado ao conhecimento da comunidade intelectual; descartou a hipótese como paranoica. O assistente dessa vez era um homem de uns vinte e poucos anos; paciência. Uma de suas colegas de congresso pareceu dar-se muito bem com o jovem.

O terceiro dia foi algo tedioso. Travou conhecimento com um professor de Praga (não o encontrara no outro congresso, naturalmente; aquele era um ramo de estudos totalmente alheio a seus interesses). Para sua surpresa, Zdenek (esse era seu nome) polemizou um tanto violentamente com ele na área de convivência do congresso. “A questão semântica é secundária no texto literário”, disse quase gritando e gesticulando muito. “O importante é interpretar a postura do autor perante seu leitor-alvo”. E perorou, com um misto de angústia e fúria: “O leitor deve convencer-se de que o autor não zomba dele!”, seus olhos arregalando-se monstruosamente. Tortorelli esboçou alguns argumentos conciliadores, embora não estivesse certo de entender o colega. Logo se separaram, e não mais o viu. Sentiu desejo de ausentar-se, ver a cidade. Chamou um táxi, consultou um livro-guia que comprara, folheou algumas páginas. A verdade é que começava a sentir-se mal. Ao chegar o táxi, decidiu voltar ao hotel, pegar suas coisas e tentar achar um voo aquela tarde mesmo para Campinas.

•••

A sala do prof. Tortorelli agora ficava vazia grande parte do tempo. O ilustre professor (agora mais ilustre ainda, com um currículo brilhante em duas áreas distintas do pensamento) comprou um computador portátil e escrevia seus trabalhos ao ar livre, em locais variados, geralmente providos de vegetação e uma bela paisagem. Ainda estava longe da idade de aposentar-se, mas seu ritmo de trabalho vinha sofrendo uma diminuição sensível. A quem perguntasse, respondia que decidira valorizar mais a qualidade do que a quantidade em sua produção. Sua vida amorosa tinha algum movimento de novo, mas nem todos entendiam seu comportamento nessa área. Depois de ser, conforme já relatamos, dolorosamente abandonado pela namorada, uma professora de Química, decidiu que não queria mais relações com mulheres intelectuais, as quais julgava arrogantes, cruéis, e pouco atraentes fisicamente (punha sempre por último esse item, pois não gostava de se sentir um libertino). Geralmente dedicava sua atenção a mulheres da assim chamada classe trabalhadora, evitando no entanto as muito pobres e as excessivamente consumistas, pois não era rico, e temia empobrecer (a contradição não lhe escapava).

Seus progressos na assemiologia chegaram a um certo impasse, como ele previra que chegariam, mas ele não mais se angustiava com essas coisas. Ao meditar sobre as duas áreas de pesquisa nas quais seu renome repousava, julgou que seria agradável uni-las, achar-lhes um elo, uma ponte. Parecia algo difícil: seu objeto de estudo precedente era diretamente ligado à vida, a julgamentos que pesam sobre ela; agora tinha-se refugiado nas palavras, em seu sentido. Nenhuma solução lhe vinha à mente; resolveu ler um pouco. Trazia consigo o “Macbeth”, cuja leitura nunca tivera tempo de fazer e agora decretara não poder mais adiar. Ao chegar no célebre solilóquio do Ato 5, Cena 5, estalou-lhe uma ideia. “Isto é o que estava procurando”. Estava ali a ponte entre a assemiologia e a metafísica: “[life] is a tale (...) signifying nothing”. Estava certo que tinha nas mãos seu próximo artigo. Fechou o livro, tentando lembrar-se de algum congresso com inscrições abertas, de preferência em alguma cidade interessante. Dessa vez não voltaria correndo, como fizera nas duas anteriores. Porra, tinha que aproveitar alguma coisa dessa vida.

•••

“Rápido, Syd, aquele táxi está livre.” O jovem de vinte e poucos anos, parecido com o próprio Simão Tortorelli em estatura e massa corporal, arrastava-se letargicamente com uma mochila gigantesca nas costas. Já no banco traseiro do carro, olhava com curiosidade a paisagem de Bucareste naquela manhã nublada de segunda-feira. A realidade é que Simão relutou um pouco a trazer seu sobrinho naquela viagem. Emília, a irmã de Simão, tinha morrido recentemente de superdose (a agulha ainda estava em seu braço quando o próprio Syd a encontrou, um fio de baba escorrendo do canto de sua boca) e seu filho era agora sua responsabilidade. Syd era, nas palavras de Simão, “retardado fronteiriço”; tendo consumido quantidades cavalares, de fato elefantinas, de maconha e LSD desde a mais tenra adolescência, seu cérebro teve uma evolução, digamos, limitada; além disso, desenvolveu algumas idiossincrasias que tornavam-no algo impróprio ao convívio social, e obviamente impossibilitavam-lhe qualquer tipo de atividade profissional. Era fruto de um romance breve de Emília com um inglês quando morava em Londres. O nome real de Syd era Roger, mas Simão dera-lhe o apelido em uma cruel referência a Syd Barrett, o cara do Pink Floyd cuja mente, segundo reza a lenda, também teria enveredado por lugares “onde nenhum homem jamais esteve”. Os conhecimentos musicais de Syd não recuavam temporalmente além dos Ramones (“uma puta banda”, segundo ele), e fora piedosamente poupado de esclarecimento sobre a alcunha, de modo que interpretara-a como uma manifestação de carinho de seu tio. Emília, por sua vez, entendera perfeitamente e não gostava nada da piada; pelo bem do garoto, silenciara, com o coração compungido na exata medida que sua própria condição mental deteriorada permitia.

Desta vez, a apresentação de seu trabalho “A Vida como Texto” (acrescido de um subtítulo pomposo que se omite aqui) era uma das últimas; isso obrigá-lo-ia a ficar durante toda a extensão do congresso, o que lhe daria a oportunidade de fazer algum turismo. Syd acompanhava-o ao congresso, e a toda parte. Não dava muito trabalho, e parece que as pessoas olhavam Simão com curiosidade e até alguma simpatia ao ver aquele apêndice misterioso a seu lado. Reencontrou Zdenek, que lhe cumprimentou efusivamente, com seu estilo espalhafatoso usual. “Tenho que lhe agradecer, meu amigo! Nossa conversa foi altamente inspiradora!”, exclamou enquanto tomava em suas mãos as de Tortorelli. Apresentaria um “importante trabalho” propondo uma lista de requisitos que um texto deve obedecer de modo que o leitor possa ter certeza de que o autor não está a zombar dele. Foi recebido com bastante frieza, e suscitou entre alguns mais sarcásticos o comentário de que o artigo não passava no teste que ele próprio propunha.

Simão passeou bastante pelas ruas de Bucareste acompanhado de Syd. Ao passar em uma rua menos movimentada na sua primeira noite na cidade, encontrou algumas prostitutas; eram muito atraentes. Com Syd a seu lado aquilo ia ser meio desajeitado, mas tinha muito desejo. Acompanhou uma delas até um hotel nas proximidades, e disse a Syd que esperasse numa poltrona no pequeno lobby enquanto subia com a mulher a um apartamento. O rapaz docilmente concordou. Simão fez tudo o mais rapidamente que pôde, e voltou com o coração na mão, de medo que o rapaz tivesse abandonado seu posto e se perdido no labirinto daquela cidade. Com grande alívio, constatou que ele ainda estava lá, entretido num jogo em seu computador de mão. Pediu à mulher que esperasse um pouco; hesitava se devia perguntar ao rapaz se também queria fazer sexo com ela. Manteve-a perto alguns instantes; o rapaz deu uma olhada de relance, e voltou a ocupar-se de seu jogo. Simão dispensou-a. Com um tapinha nas costas do sobrinho, propôs que partissem.

À noite em seu hotel, demorou a sentir sono. Pensou na sua vida. Era um sujeito irrelevante à ordem maior das coisas. Sua esfera de ação era tão limitada que tinha mínimas chances de fazer um grande mal ao mundo, ou um grande bem. Escrevia um artigozinho aqui, dava uma aulinha ali, as pessoas fingiam que se importavam, no fim todos ficavam satisfeitos e o mundo seguia girando no mesmo ritmo. Das pessoas que cruzaram seu caminho, nas escolas que frequentara, nas universidades em que lecionara, não havia ninguém importante, um grande nome. Dir-se-ia que ele estava posicionado em uma ilha no universo, uma singularidade. As coisas realmente importantes ocorriam fora dela, e a uma grande distância. Vivia num país irrelevante, fazia coisas irrelevantes. Ao menos gostaria de sentir algo forte. Se nada saía de sua ilha para o mundo, então que algo entrasse, algo dessa grandeza alheia. Mas isso não acontecia. Começava a suspeitar que esse universo de grandes coisas era também uma ilusão. As ilhas estavam em toda parte, todas insignificantes, todas isoladas. Meu Deus, uma pessoa pode ficar louca só de pensar nessas coisas. Tomou um comprimido e adormeceu profundamente.

•••

Passados alguns meses de convivência, Syd revelou-se uma companhia mais agradável do que Simão pudera a princípio supor. Um dia, tomado por um súbito acesso de consciência pesada, propôs voltar a chamá-lo por seu nome verdadeiro. Syd, ou melhor Roger, concordou. Eles davam-se tão bem que até seus gostos tornavam-se parecidos. Simão não mais se interessou em chamar mulheres para viver com ele. Quem precisa da dor de cabeça? Não lia tanta teoria agora, e publicava artigos raramente. Começou a escrever ficção mitológica sob pseudônimo, e seu primeiro romance até que teve uma saída razoável. Ouvia mais música e, a bem da verdade, seus gostos musicais transformaram-se radicalmente. Relembrava com desgosto suas preferências passadas. “Que ridículo eu era”, espantava-se. O primeiro item de seu acervo a ir para o lixo foi Webern. “Meu Deus, isso é a música ambiente do Inferno. Quanto tempo desperdiçado.”

Numa tranquila tarde de sexta-feira, após uma semana sem incidentes na Universidade, Simão propôs a Syd que ouvissem um disco juntos. Tinha trazido um baseado e podiam fumá-lo. Simão não permitia que Roger consumisse drogas com muita freqüência; seu estado mental, apesar de estável, não autorizava demasiados riscos. Mas um cigarrinho ocasionalmente não ia matar ninguém. Escolheram “The Jesus and Mary Chain”, um de seus primeiros álbuns. Era ideal para aquela tarde e aquele baseado, e a banda situava-se cronologicamente bem na interseção das gerações musicais de tio e sobrinho. “Então vai.” O ritmo letárgico da batida inundou o recinto. Deram uma tragada cada um. “Tum-tuntúmdum-túmdum-tuntúmdum...” Simão, já devaneando, perguntou-se se na Europa Central eles gostavam de ficção mitológica. “Listen to the girl...” Os congressos de fãs costumavam ser muito concorridos. “... as she takes on half the world...” Ouvira dizer que Varsóvia era uma bela cidade.

[Novembro de 2012]


Saturday, December 08, 2012

 

Algumas considerações em torno da relação entre valor e popularidade em literatura


Mais um ensaio escrito na condição de aluno. Data da composição: 1º semestre de 2009.

As considerações de valor acerca de obras literárias e seus autores fazem parte do escopo da crítica literária, uma atividade que se especializou ao longo da história da literatura e que, portanto, segue algumas regras. A importância atribuída pela crítica literária a um autor é baseada em características intrinsecamente literárias; o número de leitores atribuído a esse autor não é levado em conta. Por outro lado, o número de leitores de um autor e a persistência de sua aceitação podem ser considerados indícios da provável importância do autor; por exemplo, Shakespeare ainda é lido e encenado, o que tem correlação com sua importância literária. Essa elevada popularidade não é, certamente, causa da alta estima gozada por Shakespeare entre críticos, embora seja, em parte, admitidamente consequência desta.

No caso de escritores ainda em atividade, como é o caso de Coelho, existe uma espécie de pré-avaliação, ou pré-conceito, que é formado em relação a eles por críticos e consumidores de literatura em geral, o qual deriva de uma concepção do modus operandi do mercado, e de outros fatores correlatos; a teoria do sociólogo Pierre Bourdieu é um dos instrumentos que se têm mostrado úteis no entendimento desse e outros fenômenos ligados ao funcionamento do campo literário contemporâneo.

Segundo o modelo de Bourdieu, o campo literário estrutura-se em polos opostos, cada um dos quais caracterizando-se por uma postura em relação ao mercado. De um lado, existem os autores da chamada vanguarda, os quais se caracterizam pela inovação, e ostentam um aparente desprezo pelo mercado; esses autores têm reduzido número de leitores inicialmente, mas, se forem bem sucedidos, impor-se-ão, e ocuparão um lugar em seu nicho de mercado; no outro polo, estão os autores que buscam um sucesso de vendas imediato, e com duração curta. É neste último polo que Coelho se situa. Note que, quando se fala em "duração curta", não temos uma quantidade fixa de tempo em mente; há vários fatores a considerar. Por exemplo, Coelho já lançou vários livros, os quais geralmente têm vendas excepcionais durante alguns meses após o lançamento, e depois sofrem uma queda; no entanto, mesmo seus livros mais antigos, lançados há mais de duas décadas, ainda estão em catálogo. O ciclo de vida de seu sucesso ainda não terminou. Mas o importante é que seu objetivo principal é o sucesso imediato, sendo que, obviamente, a prolongação desse sucesso também é desejada. Do ponto de vista do público consumidor de Coelho, seu sucesso funciona como auto-alimentador, ou seja, existe uma mentalidade que diz que, "se vende, é porque é bom, portanto comprarei".

Do ponto de vista dos agentes no polo oposto ao de Coelho no campo literário, o sucesso deste autor e sua evidente procura pelo mesmo, através de campanhas publicitárias milionárias e outros artifícios, atua repulsivamente, funcionando como um atestado de baixa qualidade literária. De certa forma, isso condena o autor de mais-vendidos à eterna exclusão da consideração crítica. Digamos, por hipótese – mesmo que remota –, que Coelho escrevesse um livro bom – julgando por parâmetros críticos prevalentes hoje em dia, sejam eles quais forem; há grandes chances de que ninguém ficasse sabendo disso. Exceto, é claro, os milhões que o leriam; mas a opinião destes é sempre essa, com pequenas variações, ou seja, que seus livros são bons; portanto, nada destacaria esse livro dos demais, e, no futuro, quando, supostamente, Coelho tiver sido completamente esquecido, também o terá sido sua única hipotética contribuição notável para a literatura.

De todo modo, a pergunta "se é tão bom, por que ninguém lê?" – e seu complementar, "se é tão ruim, por que todo mundo lê?" – merece uma resposta, ou pelo menos uma tentativa de resposta. Pode-se argumentar que o valor estético não é mensurável estatisticamente, ou seja, o fato de um único leitor achar valor em uma obra não é menos significativo do que um milhão deles o fazerem. Afinal, a leitura é sempre uma atividade individual, e um milhão de leitores são apenas um milhão de indivíduos, cada um deles com sua experiência individual, a qual não se soma às dos outros. Se for assim, no entanto, consensos acadêmicos serão tão irrelevantes quanto consensos populares e, levando a lógica exposta às suas últimas consequências, pouco importará se este autor foi "consagrado" e aquele "caiu em desgraça". Até certo ponto, não há como negar essas proposições: o uso de consensos e cânones como referências sagradas e indiscutíveis tem pouco mais valor do que a consulta à lista de mais-vendidos. Há uma certa falácia, no entanto, no modo como a questão foi colocada acima, que é preciso desmascarar. Em verdade, o propósito da comunidade literária, em seu segmento crítico, não deve ser o de estabelecer padrões e baluartes, sendo que, muitas vezes, cabe a ela demoli-los. Através do diálogo entre seus pares, deve perseguir o objetivo de abalar crenças petrificadas que não se justifiquem, venham elas de onde venham. O elogio e a construção de reputações deve existir, naturalmente, mas dentro desse mesmo paradigma; ou seja, a promoção de um autor da condição de "desconhecido" ou "maldito" àquela de "interessante" ou "importante" não deixa de funcionar como uma crítica aos valores ultrapassados ou mesmo à preguiça que porventura sejam responsáveis pela falta de atenção previamente dada ao referido autor. No caso de autores célebres, a atenção crítica presente só faz sentido ao propor novas leituras desse autor; é o caso de Shakespeare, que continua suscitando novas leituras, por exemplo as fascinantes análises de Marc Shell para Hamlet e Medida por Medida. Se, como nesse caso, o constantemente renovado interesse por um autor servir para cimentar a reputação do mesmo, isso será como uma consequência natural, não buscada, da atividade crítica.

Referências:

Bourdieu, Pierre. As regras da arte.

Dolan, Frederick M. Review of Marc Shell's "Children of the Earth: literature, politics, and nationhood". Political Theory 24:1 (1996). Disponível em:  <http://homepage.mac.com/WebObjects/FileSharing.woa/wa/Shell_review.pdf.pdf-zip.zip?a=downloadFile&user=fmdolan&path=/Public/Book%20Reviews/Shell%20review.pdf>

Shell, Marc. Preface to "The end of kinship: 'Measure for measure', incest, and the ideal of universal siblinghood". Disponível em <http://www.people.fas.harvard.edu/~mshell/Shell.%20EK.Front%20Matter.pdf>

 

Análise do poema "O Chevrolet", de Ruy Proença


A seguir, o poema O Chevrolet de RUY PROENÇA:

"O poema estava lá.

A velha pasta verde na estante

no fundo da pilha.

Um único poema na pasta,

estranho detalhe.

Um velho poema

que não envelhecera.

A imagem central era clara:

um Chevrolet bege anos 50

de linhas arredondadas.

Entrei, sentei ao volante, dei a partida.

Os pneus faixa-branca rodando

as marchas passadas.

Enquanto ganhava altura

o destino entrevisto chamava-se Plutão.

No retrovisor o que ficava:

o novelo de poeira desenrolado

a velha estrada de terra."

(copiado de http://palavrarte.com/poemas_poetas/poempoe_poebrasII.php )

A análise abaixo foi feita no 1º semestre de 2009, enquanto aluno de um curso de Estudos Literários.

O texto é dividido em duas partes. Na primeira parte o Eu lírico narra como achou um poema entre seus papéis velhos; sabe-se que este foi escrito há muito tempo ("um velho poema"); o Eu lírico refere-se na primeira pessoa ao personagem do poema achado, de onde se deduz que o poema achado foi escrito pela mesma pessoa que o achou. A segunda parte consiste na exposição da "imagem central" do poema achado: resumidamente, o Eu lírico entra num carro que em seguida levanta voo com destino ao distante planeta Plutão.

É um texto com uma certa carga sentimental; nosso encontro com algo que escrevemos há muito tempo é sempre o encontro com um eu mais jovem, ocasionando um despertar de lembranças e sentimentos adormecidos. O frescor da juventude expresso pelo "velho poema" fica evidente no entusiasmo que empresta ao carro, possivelmente recém-adquirido, poderes fantásticos. A época evocada é provavelmente os anos 50 ou 60 ("um Chevrolet bege anos 50"), naturalmente fervilhantes e animados. O contraste com o presente doméstico, remexendo em papéis velhos numa estante, acentua a melancolia nostálgica.

O texto tem também aspectos metaliterários interessantes. Segundo o Eu lírico, o velho poema "não envelhecera"; o sentido dessa afirmação parece estar relacionado ao forte impacto emocional sofrido pelo Eu lírico ao lê-lo após tanto anos; a conexão mental com o passado foi feita; aquele Eu jovem ainda vive de alguma maneira no Eu maduro. Podemos conjeturar que ninguém exceto o próprio autor do "velho poema" o leu; portanto temos aqui a literatura como fenômeno privado: o autor é seu próprio leitor, e o tempo decorrido condiciona fortemente a leitura. O texto também nos impele indiretamente a uma pergunta: será que, se achássemos um texto desconhecido em versos numa pasta em uma estante, seria ele lido por nós como um poema?

Todas essas reverberações emocionais e metaliterárias são atingidas de maneira sutil e engenhosa; por trás da aparente simplicidade do estilo esconde-se uma precisão que necessariamente é fruto de trabalho formal. O desligamento experimentado pelo Eu lírico – primeiro do tempo presente, depois, em seu poema, das leis físicas – é espelhado por uma forma poética desligada de qualquer métrica.

Thursday, December 06, 2012

 

Comparação entre o sentido de 'virtù' no "Decamerão" de Boccaccio e no "Príncipe" de Maquiavel


O tema do texto abaixo foi proposto pelo prof. Carlos Eduardo O. Berriel, num curso ministrado por ele na Unicamp no 1º semestre de 2009. Baseei seu conteúdo nas aulas dele.

A palavra virtù tem o mesmo radical de 'viril', o qual está ligado à masculinidade. Tanto no Decamerão quanto no Príncipe, a virtù está ligada à faculdade de agir sobre o próprio destino. Na Idade Média, não havia muito espaço para o indivíduo mudar a situação social na qual ele estava. Na passagem para o Renascimento, essa visão de mundo gradualmente cedeu lugar a uma outra, na qual o homem tinha alguma mobilidade. Sua capacidade de mudar sua condição social ou de vida passou a ser fruto da combinação entre virtù e fortuna. Nos tempos em questão, a fortuna era encarada como possuidora de uma essência feminina; sendo a virtù o princípio masculino, a imagem da pessoa de virtù é aquela de alguém que doma sua fortuna como um homem domaria uma mulher.


As diferenças entre os sentidos de virtù nos dois livros estão ligados aos temas tratados por cada um deles. Em O Príncipe, a virtù é uma qualidade do homem político, em especial no contexto da transição entre o feudalismo e o Estado absolutista. O livro trata especificamente de técnicas de tomada do poder e de conservação do mesmo. A virtù seria o conjunto de qualidades pessoais que favorecem esses objetivos de tomada e manutenção do poder. Nesse contexto específico, poderíamos resumir a virtù em três principais atributos: ambição, coragem e habilidade; sem qualquer dos três, o sucesso torna-se pouco provável. O exemplo supremo de virtù nesse livro é César Bórgia.

Já no Decamerão, a virtù é empregada num contexto mais ligado à vida social, e está estreitamente ligada à decadência das regras e distinções sociais prevalentes na Idade Média. Aqui, o conceito de virtù está fortemente ligado ao de nobreza, o qual deixa de ser um atributo ligado ao nascimento (ou seja, fortuna) e passa a ser produto do caráter da pessoa. Entre os traços de caráter associados à virtù estão a ambição social, a disposição de fazer valer suas opiniões e desejos, a habilidade em sua profissão, enfim tudo aquilo que caracteriza alguém que toma as rédeas de sua vida em suas próprias mãos. Um exemplo de virtù nesse livro vem paradoxalmente de uma mulher: Guismunda, que busca sua felicidade amorosa com engenho e coragem, e não recua de suas convicções nem diante da morte.


Saturday, December 01, 2012

 

O precioso ridículo de Eça de Queirós. Entra Acácio


O trabalho abaixo foi apresentado como objeto de avaliação em uma disciplina do Prof. Paulo Franchetti, na Unicamp, no 1º semestre de 2012. A nota atribuída ao mesmo foi Sete e Meio. Nenhum comentário sobre o mesmo foi feito pelo professor ou pelo seu assistente.


“Falava-se nessa noite do Alentejo, de Évora e das suas riquezas, da capela dos Ossos, quando o conselheiro entrou com o paletó no braço. Foi-o dobrar solicitamente numa cadeira a um canto, e no seu passo aprumado e oficial, veio apertar as mãos ambas de Luísa, dizendo-lhe com uma voz sonora, de papo:

-- Minha boa Sra. D. Luísa, de perfeita saúde, não? O nosso Jorge tinha-me dito. Ainda bem! Ainda bem!

Era alto, magro, vestido todo de preto, com o pescoço entalado num colarinho direito. O rosto aguçado no queixo ia-se alargando até a calva, vasta e polida, um pouco amolgada no alto; tingia os cabelos, que duma orelha à outra lhe faziam colar por trás da nuca – e aquele preto lustroso dava, pelo contraste, mais brilho à calva; mas não tingia o bigode: tinha-o grisalho, farto, caído aos cantos da boca. Era muito pálido; nunca tirava as lunetas escuras. Tinha uma covinha ao queixo, e as orelhas grandes muito despegadas do crânio.

Fora, outrora, diretor-geral do Ministério do Reino, e sempre que dizia “El-Rei!”, erguia-se um pouco na cadeira. Os seus gestos eram medidos, mesmo a tomar rapé. Nunca usava palavras triviais; não dizia “vomitar”; fazia um gesto indicativo e empregava “restituir”. Dizia sempre “o nosso Garrett, o nosso Herculano”. Citava muito. Era autor. E sem família, num terceiro andar da Rua do Ferregial, amancebado com a criada, ocupava-se de economia política: tinha composto os ELEMENTOS GENÉRICOS DA CIÊNCIA DA RIQUEZA E SUA DISTRIBUIÇÃO, segundo os melhores autores, e como subtítulo: “Leituras do Serão!” Havia apenas meses publicara a RELAÇÃO DE TODOS OS MINISTROS DE ESTADO DESDE O GRANDE MARQUÊS DE POMBAL ATÉ NOSSOS DIAS, COM DATAS CUIDADOSAMENTE AVERIGUADAS DE SEUS NASCIMENTOS E ÓBITOS.

-- Já esteve no Alentejo, conselheiro? – perguntou-lhe Luísa.

-- Nunca, minha senhora – e curvou-se. – Nunca! E tenho pena! Sempre desejei lá ir, porque me dizem que as suas curiosidades são de primeira ordem.

Tomou uma pitada duma caixa dourada, entre os dedos, delicadamente, e acrescentou com pompa:

-- De resto, país de grande riqueza suína!

-- Ó Jorge, averigua quanto é o partido da Câmara em Évora – disse Julião do canto do sofá.

O conselheiro acudiu, cheio de informações, com a pitada suspensa:

-- Devem ser seiscentos mil-réis, Sr. Zuzarte, e pulso livre. Tenho-o nos meus apontamentos. Por quê, Sr. Zuzarte, quer deixar Lisboa?”  (In: Queirós, Eça de. O Primo Basílio. São Paulo: Abril Cultural, 1972. Capítulo II, p. 29)
****

O trecho de “O Primo Basílio” transcrito acima contém a primeira aparição (melhor dizendo, a primeira aparição síncrona com a narração) do personagem do Conselheiro Acácio no romance. Ele é descrito de maneira a revelar de antemão muitas das características que o marcam enquanto personagem. Essa descrição e o breve trecho de diálogo que se segue serão aqui objeto de algumas considerações.

A frase “Citava muito” justifica que o leitor procure sua confirmação ao longo do romance. Antes dessa aparição, Acácio aparece, em um evento relembrado pelo narrador, citando alguns versos aparentemente oriundos da tradição oral (“As neves que na fronte se acumulam / Terminam por cair no coração”). No capítulo IX lê-se outra citação que não parece ter autor definido (“Em lábios de coral, pérolas finas”) e, ainda no capítulo IX, versos que ele atribui a um poeta que não conheço (“Seu coração é nobre, e a fronte altiva / Revela-lhe da alma a pura essência”). Por fim, no capítulo XI, durante o jantar em celebração pelo recebimento de um título, o narrador informa que Acácio cita o “Eurico” (que suponho ser o romance de Herculano), Bocage, e a si mesmo. É interessante analisar o seguinte ponto: essa quantidade de citações justifica a afirmação inicial do narrador (“citava muito”)? É difícil responder a essa pergunta. Em todo caso, vê-se o romance no seguinte beco sem saída: se se julgar que é realmente um número alto de citações, qual era a necessidade de informar previamente o leitor desse fato? Por outro lado, se o número de citações parecer baixo ou razoável, a afirmação inicial parecerá exagerada. Em suma, resulta que é sempre um erro descrever esse tipo de característica de um personagem. É preferível que o autor inclua a característica no comportamento do personagem e confie no julgamento do leitor, ou simplesmente a omita por não ser relevante à narrativa.

Um ponto a se considerar diz respeito à descrição física de Acácio. Descrevem-se detalhes de seu rosto e cabeça, e um problema de interpretação se impõe: existe comicidade nessa descrição? Mais ainda: dado que a compleição moral de Acácio é cômica, foi intenção do narrador criar uma compleição física que com aquela se coadunasse? Os preceitos do new criticism diriam que é falacioso procurar intenções autorais, mas o problema permanece de qualquer jeito. Ao ignorarem-se intenções, o leitor vê-se às voltas, na melhor das hipóteses, com a questão de o que fazer com um parágrafo que lhe oferece, entre outros detalhes aparentemente inúteis, a covinha no queixo de um personagem. Deve ser o tal “efeito de realidade” postulado por Barthes.

Passando à descrição da história e da psicologia de Acácio, apresentam-se novos desafios interpretativos. Após um exagero trivialmente refutável (“nunca usava palavras triviais”) e uma antecipação redundante (“era autor”), chama a atenção a seguinte enunciação: “amancebado com a criada, ocupava-se de economia política”. Obviamente não é neutra a justaposição; se estão as ideias na mesma frase, uma associação é implicada. E o que se pode inferir da mesma? Que há algo de necessariamente incompatível e/ou reprovável em ser amancebado com a criada e ocupar-se de economia política? É difícil achar outro caminho interpretativo. É certo que no desenvolvimento ulterior do romance o enfoque abarca também a hipocrisia do personagem, já que este oculta o relacionamento, ao mesmo tempo em que finge uma defesa de valores tradicionais. Mas o trecho analisado dificilmente poderia ser lido sob essa luz, pois nada há nele ou em torno dele que se refira ao mencionado ocultamento. Além disso, não existe uma relação próxima dessas questões morais com a “economia política”.

É possível, nesse estágio da análise, chegar a algumas conclusões sobre o nível e o estilo da sátira de Eça de Queirós contida no personagem do Conselheiro Acácio. Não se vê nada aqui que justifique a opinião do próprio Eça na carta a Teófilo Braga que figura como adendo ao romance. Nessa carta, Eça defende o estatuto “revolucionário” de sua obra. Acácio e seus colegas são os “empecilhos” à revolução. Porém, o que se depreende do que foi analisado até agora do trecho escolhido do romance (e que será, diga-se de passagem, confirmado no resto deste) é a presença de uma comicidade com parentesco na farsa; o grotesco da aparência física alia-se a trejeitos comportamentais para compor um personagem que o autor decretou de antemão ser ridículo. Os hábitos sexuais são invocados com a mesma intenção burlesca, e é realmente indecidível se o que se condena é a hipocrisia em si, ou se a hipocrisia surge apenas como mais um elemento de comicidade perante um comportamento sexual, esse sim, condenado ou ridicularizado.

É claro que existem elementos de cunho realmente político abordados no romance, e está-se lidando aqui apenas com uma descrição introdutória de um personagem. Mas o fato é que essa descrição existe e isso implica que a sátira exclusivamente política não foi julgada suficiente pelo autor. Ademais, é preciso admitir, embora isso talvez seja irrelevante para a presente análise, que não se entende bem por que as características politicamente liberais de Acácio são objeto de sátira. Ou talvez, justamente, essa admissão não seja tão irrelevante; é razoável especular que haja uma expectativa, por parte do autor, da existência uma porção expressiva de leitores que precisem de uma comicidade mais “baixa”, mais “fácil”, algo que torne a vilania do personagem mais compreensível e por tabela torne vilãs as suas convicções políticas.

Seria tedioso continuar a análise frase a frase como foi feito até agora; na sequência, vê-se que a narração explora preferencialmente a obsessão de Acácio com informações (“datas cuidadosamente averiguadas”; “grande riqueza suína”; “nos meus apontamentos”). Mais uma vez, busca-se um efeito cômico pelo exagero, mas o alcance da sátira merece ser examinado. O comportamento de Acácio pode parecer socialmente inadequado em relação aos padrões de adequação social do leitor. Dado que não parece haver grande inadequação face aos padrões da sociedade que o cerca, o alvo da sátira passa a ser essa sociedade como um todo. Por outro lado, é difícil inferir qualquer laivo de torpeza moral a partir dos traços de comportamento e conversação apresentados. Isso, mais os elementos anteriormente analisados, parece caracterizar uma sátira ligeira, em que elementos oriundos da farsa são trabalhados de maneira algo mais refinada que na farsa clássica e fazem a ponte com a crítica política.

Qual é então a razão para a presença do conselheiro Acácio em O Primo Basílio, convencionalmente visto como um romance sobre o adultério? Talvez não seja muito diferente da razão para a presença de todos os outros personagens secundários nesse romance, todos eles de forte tipificação, e com algum conteúdo satírico, às vezes mais para o burlesco, como D. Felicidade, às vezes mais sombrios, como Julião Zuzarte. Em sua totalidade, eles compõem um mosaico da sociedade lisboense da época, dentro da qual Eça procura contextualizar o adultério. É um consenso tácito, no entanto, que Acácio é o mais divertido desses personagens. É muito importante, por motivos inclusive estéticos, que ele esteja no romance. Sem o seu alívio cômico, O Primo Basílio estaria dominado de maneira sufocante pelas hesitações, chiliques e desmaios de Luísa, uma das personagens mais desagradáveis da história da literatura universal, e isso faria de O Primo Basílio por sua vez um romance igualmente desagradável.

Uma questão interessante é se a felicidade imperturbada de Acácio ao longo de todo o romance chega a perturbar e escandalizar o leitor; outra questão é se a morte de Luísa o perturba ou se, muito pelo contrário, é grandemente bem-vinda, e mesmo necessária e, de uma maneira um tanto inusual, catártica (é a morte de uma grande chata).

A revolução esperada por Eça de Queirós não veio, mas seu trabalho em O Primo Basílio foi um sucesso estrondoso (com exceção de “conservadores” empedernidos como o crítico Machado de Assis). Ao elaborar um romance em que a vileza ou a parvoíce dão o tom, e a bondade é a exceção que confirma a regra [1], e ser extremamente bem recebido nessa mesma sociedade, Eça parece obedecer à fórmula com que muito depois dele o então crítico de cinema François Truffaut definiu o cinema de prestígio das décadas de quarenta e cinqüenta: “Filmes anti-burguesia feitos pelos burgueses, para os burgueses” [2]. Talvez aí esteja a chave que decifra o sentido último de Acácio como personagem. Acácio é o hipócrita démodé. Eça de Queirós personifica a atualização das estratégias de hipocrisia de acordo com os novos tempos. A essência é a mesma, e nada mais apropriado que colocar na boca desse ilustre escritor palavras que ele naturalmente nunca poderia proferir: “Acácio sou eu.”.

Referências:
[1] Muito sintomática é a observação do próprio Eça na mencionada carta apensa ao romance: “e às vezes quando calha, um pobre bom rapaz (Sebastião)” [grifo meu]. É realmente uma infelicidade muito grande ser bom, não?
[2] Apud: Thomajan, Dale. The Dirty Dozen. In http://my.primehome.com/theodorospa/thomajan.htm

This page is powered by Blogger. Isn't yours?