Thursday, December 27, 2012

 

[Conto] Pare Enquanto Está Ganhando, Dr. Tortorelli

por Marcelo Gilli



“Meu filho, nasceste com o Mal em tuas entranhas, e é esse Mal que te leva a não te aquietares nunca em um só lugar e a te sentires bem em lugares onde és um estranho” -- disse com sua voz tonitruante o velho Rungnar. E continuou, agora mais perplexo que enraivecido: “Nós trolls temos vivido há séculos nas cavernas distantes, mas tu sentes o chamado das florestas, com seus labirintos infernais.” Borgnar, respeitoso mas irredutível, replicou-lhe: “Pai, lembra-te que o bicho homem é inimigo de nossa raça, e que devemos, sempre que pudermos, lançar obstáculos em seu caminho, e queimar suas plantações, e atar os seus pés para que tropece. Assim deixaremos um rastro no mundo e far-nos-emos únicos.”

S.L.L. Tørtør: “O troll Borgnar”



O Professor Simão Tortorelli deu um grande suspiro de alívio ao ler as palavras “mensagem enviada” na tela de seu computador. Em alguns segundos seu último artigo estaria na caixa de entrada de um esforçado acadêmico encarregado de sua avaliação para a inclusão no congresso sobre “Ontologia do Mal”, a ser realizado em Praga, dali a alguns meses. Estava bem menos confiante na sua aceitação do que estivera quando submetera seus artigos precedentes. Este tinha sido o trecho mais acidentado de sua até então tranquilamente produtiva carreira de pesquisador. Longos intervalos de falta de inspiração haviam interrompido por várias vezes o trabalho, e severas dúvidas sobre as perspectivas futuras de sua carreira nesse ramo do pensamento assaltavam-no com intensidade algo alarmante.

Levantou-se da cadeira, grampeou a cópia em papel que acabara de imprimir para uso próprio, e saiu para tomar um café na cantina. Seus passos sonoros no corredor denunciavam sua estatura elevada e seu peso que começava a sair de controle mas ainda não impedia sua agilidade natural nem comprometia os resquícios de vaidade herdados daquele jovem bem apessoado que fora há uma década.

Tomou seu café sozinho, olhando para um lado e outro à procura de algum conhecido com quem pudesse conversar. Sempre que enviava um artigo, sentia essa comichão de falar sobre ele; o fato de não haver mais possibilidade de correções anulava, por um lado, qualquer propósito imediatamente prático da conversa, mas dava, por outro, um caráter mais livre e lúdico a ela, ajudado ainda pela certeza de que ninguém mais poderia plagiá-lo. Não teve sorte essa vez: ninguém apareceu, e em verdade, por motivos fortuitos, não teve oportunidade de falar com ninguém sobre o trabalho até o momento da apresentação.

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O Centro de Convenções da Universidade de Praga estava muito movimentado naquela manhã de segunda-feira. O Dr. Tortorelli, um pouco mais nervoso que o seu habitual nessas ocasiões, preparou-se para subir ao estande de apresentações. Quase tropeçou na escadinha, apoiando-se a tempo numa assistente que estava logo à sua frente na entrada do estande, uma loira bonita que lhe deu um sorriso confortador. Suando muito, iniciou sua exposição. Parecia-lhe de repente que falava sem convicção, que havia cavado um nicho para si mesmo e que o que fazia era simplesmente assegurar sua permanência nele.

A posição defendida em seu artigo era uma espécie de equilibrismo conceitual, uma solução de compromisso: negava razão, por um lado, aos que defendiam um “estatuto absoluto” ao Mal, mas não advogava “a idéia socrática de que o Mal não possui realidade própria e é apenas fruto de uma situação de ignorância” (citando diretamente de seu artigo). “É necessário por razões éticas admitir a existência do Mal e até mesmo delimitá-lo, muito embora não caiba investigar e nem mesmo postular sua essência”, categoricamente afirmava. A conclusão, escrita a duras penas, e sobre a qual sentia-se sumamente inseguro, era de que, “ao contrário do que afirmam as teologias tradicionais, não é o Mal mas sim o Bem que contagia o Universo, possuindo a tendência irreprimível de ubiquidade”. Terminou sua exposição e passou, com certa apreensão, às perguntas dos presentes. Um jovem exibindo um malcuidado cavanhaque e vestido pessimamente levantou a mão e pediu-lhe que elaborasse um pouco a tese da conclusão. Talvez por uma reação paradoxal ao seu desespero crescente, o palestrante foi tomado de uma súbita onda de autoconfiança. Pontificou que não há evento em uma história individual ou coletiva que não seja, quando corretamente compreendido, um Bem ou a causa de um Bem. Desafiadoramente, pediu ao autor da pergunta, ou mesmo a qualquer membro do auditório, que lhe desse o exemplo mais extremo de Mal que lhe viesse à mente. O jovem coçou a cabeça e, um tanto titubeante, arriscou: “A Segunda Guerra Mundial”. Tortorelli olhou para ele como se lhe perguntasse: “Não consegue pensar em nada pior que isso?”, mas respondeu simplesmente: “o transistor, que nasceu das pesquisas militares, depois evoluiu para o circuito integrado, e depois para o chip, e todo mundo sabe o resto da história”. Algumas pessoas na audiência sorriram, Tortorelli relaxou um pouco. Um homem consideravelmente mais idoso que a maioria presente, sentado ao fundo do auditório, pronunciou uma única palavra: “Holocausto”. Tortorelli, a princípio um pouco desnorteado, pensou durante uns vinte segundos e respondeu: “O Estado de Israel”. Houve uma reação mista, alguém rindo disse com ironia: “Ah, e isso foi bom.”, e se calou em seguida como se estivesse subitamente arrependido e receasse polemizar; outros fecharam a cara, Tortorelli sentiu que entrava em terreno movediço. De repente, um homem mais ou menos de sua idade, de pele muito branca e olhos muito claros, disse: “A escravidão dos negros”. O palestrante sentiu que aquilo já estava indo longe demais e era melhor parar enquanto estava ganhando, ou, na pior das hipóteses, perdendo pouco; a tentação de provar o quanto era brilhante, no entanto, era grande, e prosseguiu: “Bem, não sei se algo tão extenso temporalmente e variado em seus aspectos pode ser analisado como um evento único, mas imagino que por causa da escravidão um segmento das etnias africanas, em vez de ser miserável e viver com poucas perspectivas na África, é próspero nos Estados Unidos, e um outro segmento dessas etnias, em países como o Brasil ou os próprios Estados Unidos, não é tão próspero mas tem algumas perspectivas de melhora que não teria no continente de seus ancestrais. E acho que infelizmente vou ter que interromper aqui minha apresentação, agradecendo a todos vocês pelo estimulante debate.” No táxi para o aeroporto, tinha a cabeça doendo e pensamentos desencontrados; a polêmica da qual tinha sido parte lhe causava desconforto e excitação simultaneamente. Involuntariamente fantasiou, durante o longo trajeto, sobre ramificações hipotéticas do debate e exemplos novos lhe vinham à mente (“estupro e gravidez” era o seu preferido); uma parte de si, com alguma perversidade, desejava ter ficado e polemizado mais e mais, até que o caos se instaurasse no recinto do auditório. Imaginava sua saída triunfal; desceria as escadas, agora com segurança e, ao passar pela bela loira que lhe sorrira, convidá-la-ia para um drinque, e ela, naturalmente, aceitaria, extasiada. Exausto, dormiu no avião, tão profundamente quanto possível num assento de classe econômica.

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O Professor Tortorelli não escrevia nada há dois meses. Sentia-se esgotado interiormente. Olhava-se no espelho e constatava os efeitos das muitas noites que vinha passando sem dormir. “Simão, tu és um impostor”, dizia à sua imagem refletida. “Uma fraude, doutorzinho, isso é o que és.” Não sabia por quê, a segunda pessoa gramatical caía particularmente bem nessas auto-vituperações.

Precisava encontrar um campo novo para si, algo que o estimulasse. Era um risco, pois havia feito um nome como “ontólogo do mal”, e de certa forma era mais seguro continuar produzindo pequenas variações de seus antigos artigos, semi-repetições que não cheiravam nem fediam, mas tinham uma platéia cativa, por assim dizer, do que aventurar-se por caminhos pouco explorados. Uma série de acontecimentos fortuitos, somada à sua constante atenção à procura de algo novo, lhe esboçaram ideias que valia a pena explorar. Ideias que o levavam a regiões intelectuais que pareciam ter muito pouco a ver com seu trabalho até então.

Viria em boa hora essa renovação, a bem dizer. Sua vida extra-acadêmica, que já estava um tanto estagnada antes do congresso em Praga, tomou um rumo para pior após o mesmo. Sua companheira de três anos surpreendeu-lhe com a proposta de não morarem mais juntos, e o que se anunciava como uma proposta era obviamente uma decisão já tomada, e essa decisão, como veio a saber pouquíssimo tempo depois, não se referia a um simples reposicionamento geográfico, mas a um rompimento total e definitivo. Desconsolado, Simão, agora bebendo mais do que o costume, escarnecia de si junto a seu espelho favorito: “Aí, meu amigo, encontra o lado bom disso.”

Assim, foi em meio a essa situação existencial desanimadora que Simão Tortorelli começou a pensar seriamente no problema da falta de sentido, que para ele estava intimamente relacionado ao da incompreensão. “Se um texto não é compreendido por uma única pessoa, não importa quão claro seja para as demais, essa incompreensão solitária merece ser estudada”, declara em um de seus artigos iniciais. Em outro afirma: “Se um texto não é compreendido por ninguém em um determinado instante da história, como chegar sistematicamente a um veredito sobre sua incompreensibilidade?” Essas e outras questões semelhantes eram objeto de sua atenção; chegou a cunhar uma denominação para o conjunto de questões que vinha examinando: assemiologia.

Seu primeiro artigo sobre o assunto era bastante introdutório e não apresentava muitas respostas, embora tivesse muitas perguntas. Achou que era suficientemente original para que fosse apresentado em um congresso não muito ambicioso a ser realizado em Budapeste em novembro próximo. Estava mais cauteloso nessa sua nova fase. Não sabia se agüentaria um fracasso em seu estado psicológico atual. Resolveu estudar um pouco de húngaro nos poucos meses que o separavam do congresso; depois do fiasco em Praga, esperava estabelecer algum contato com a população feminina local em sua próxima excursão turístico-acadêmica.

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Budapeste pareceu ao Dr. Tortorelli uma cidade pelo menos tão bela quanto Praga. Decerto seu estado psicológico recuperado era responsável por alguma alteração em sua percepção ambiental, de modo que suas opiniões de agora e de antes não podiam ser objetivamente comparadas. Chegou ao hotel, tomou uma forte ducha. Agora duchava-se mais frequentemente; dir-se-ia que tentava limpar de si mesmo alguma sujeira recalcitrante, talvez seu passado.

Sentia-se mais feliz em sua nova área de estudos. Era de certo modo um alívio desligar-se de temas tão pesados como os que anteriormente o ocupavam, e ocupar-se de outros que dir-se-ia eticamente irrelevantes, ao menos ao que um primeiro exame indicava. Também notou que seus colegas de congresso agora formavam uma comunidade mais equilibrada em relação à participação dos sexos; ou seja, que havia mais mulheres entre eles. Isso provavelmente lhe faria bem, embora nenhuma das que tinha visto durante o primeiro dia do congresso lhe tivesse atraído de maneira especial. De qualquer modo, havia as recepcionistas, e assistentes de vários tipos, que costumavam ser muito interessantes (lembrou-se da loira em Praga).

O segundo dia era quando apresentaria o trabalho. Chegou bem cedo, pois era uma das primeiras apresentações. Dessa vez, tudo correu sem sobressaltos nem nervosismo, as perguntas foram fáceis de responder, nada de polêmico, o tema não dava muita margem a esse tipo de coisa. Talvez o público lhe estivesse tratando um pouco condescendentemente demais; imaginou que talvez sua crise depressiva recente tivesse chegado ao conhecimento da comunidade intelectual; descartou a hipótese como paranoica. O assistente dessa vez era um homem de uns vinte e poucos anos; paciência. Uma de suas colegas de congresso pareceu dar-se muito bem com o jovem.

O terceiro dia foi algo tedioso. Travou conhecimento com um professor de Praga (não o encontrara no outro congresso, naturalmente; aquele era um ramo de estudos totalmente alheio a seus interesses). Para sua surpresa, Zdenek (esse era seu nome) polemizou um tanto violentamente com ele na área de convivência do congresso. “A questão semântica é secundária no texto literário”, disse quase gritando e gesticulando muito. “O importante é interpretar a postura do autor perante seu leitor-alvo”. E perorou, com um misto de angústia e fúria: “O leitor deve convencer-se de que o autor não zomba dele!”, seus olhos arregalando-se monstruosamente. Tortorelli esboçou alguns argumentos conciliadores, embora não estivesse certo de entender o colega. Logo se separaram, e não mais o viu. Sentiu desejo de ausentar-se, ver a cidade. Chamou um táxi, consultou um livro-guia que comprara, folheou algumas páginas. A verdade é que começava a sentir-se mal. Ao chegar o táxi, decidiu voltar ao hotel, pegar suas coisas e tentar achar um voo aquela tarde mesmo para Campinas.

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A sala do prof. Tortorelli agora ficava vazia grande parte do tempo. O ilustre professor (agora mais ilustre ainda, com um currículo brilhante em duas áreas distintas do pensamento) comprou um computador portátil e escrevia seus trabalhos ao ar livre, em locais variados, geralmente providos de vegetação e uma bela paisagem. Ainda estava longe da idade de aposentar-se, mas seu ritmo de trabalho vinha sofrendo uma diminuição sensível. A quem perguntasse, respondia que decidira valorizar mais a qualidade do que a quantidade em sua produção. Sua vida amorosa tinha algum movimento de novo, mas nem todos entendiam seu comportamento nessa área. Depois de ser, conforme já relatamos, dolorosamente abandonado pela namorada, uma professora de Química, decidiu que não queria mais relações com mulheres intelectuais, as quais julgava arrogantes, cruéis, e pouco atraentes fisicamente (punha sempre por último esse item, pois não gostava de se sentir um libertino). Geralmente dedicava sua atenção a mulheres da assim chamada classe trabalhadora, evitando no entanto as muito pobres e as excessivamente consumistas, pois não era rico, e temia empobrecer (a contradição não lhe escapava).

Seus progressos na assemiologia chegaram a um certo impasse, como ele previra que chegariam, mas ele não mais se angustiava com essas coisas. Ao meditar sobre as duas áreas de pesquisa nas quais seu renome repousava, julgou que seria agradável uni-las, achar-lhes um elo, uma ponte. Parecia algo difícil: seu objeto de estudo precedente era diretamente ligado à vida, a julgamentos que pesam sobre ela; agora tinha-se refugiado nas palavras, em seu sentido. Nenhuma solução lhe vinha à mente; resolveu ler um pouco. Trazia consigo o “Macbeth”, cuja leitura nunca tivera tempo de fazer e agora decretara não poder mais adiar. Ao chegar no célebre solilóquio do Ato 5, Cena 5, estalou-lhe uma ideia. “Isto é o que estava procurando”. Estava ali a ponte entre a assemiologia e a metafísica: “[life] is a tale (...) signifying nothing”. Estava certo que tinha nas mãos seu próximo artigo. Fechou o livro, tentando lembrar-se de algum congresso com inscrições abertas, de preferência em alguma cidade interessante. Dessa vez não voltaria correndo, como fizera nas duas anteriores. Porra, tinha que aproveitar alguma coisa dessa vida.

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“Rápido, Syd, aquele táxi está livre.” O jovem de vinte e poucos anos, parecido com o próprio Simão Tortorelli em estatura e massa corporal, arrastava-se letargicamente com uma mochila gigantesca nas costas. Já no banco traseiro do carro, olhava com curiosidade a paisagem de Bucareste naquela manhã nublada de segunda-feira. A realidade é que Simão relutou um pouco a trazer seu sobrinho naquela viagem. Emília, a irmã de Simão, tinha morrido recentemente de superdose (a agulha ainda estava em seu braço quando o próprio Syd a encontrou, um fio de baba escorrendo do canto de sua boca) e seu filho era agora sua responsabilidade. Syd era, nas palavras de Simão, “retardado fronteiriço”; tendo consumido quantidades cavalares, de fato elefantinas, de maconha e LSD desde a mais tenra adolescência, seu cérebro teve uma evolução, digamos, limitada; além disso, desenvolveu algumas idiossincrasias que tornavam-no algo impróprio ao convívio social, e obviamente impossibilitavam-lhe qualquer tipo de atividade profissional. Era fruto de um romance breve de Emília com um inglês quando morava em Londres. O nome real de Syd era Roger, mas Simão dera-lhe o apelido em uma cruel referência a Syd Barrett, o cara do Pink Floyd cuja mente, segundo reza a lenda, também teria enveredado por lugares “onde nenhum homem jamais esteve”. Os conhecimentos musicais de Syd não recuavam temporalmente além dos Ramones (“uma puta banda”, segundo ele), e fora piedosamente poupado de esclarecimento sobre a alcunha, de modo que interpretara-a como uma manifestação de carinho de seu tio. Emília, por sua vez, entendera perfeitamente e não gostava nada da piada; pelo bem do garoto, silenciara, com o coração compungido na exata medida que sua própria condição mental deteriorada permitia.

Desta vez, a apresentação de seu trabalho “A Vida como Texto” (acrescido de um subtítulo pomposo que se omite aqui) era uma das últimas; isso obrigá-lo-ia a ficar durante toda a extensão do congresso, o que lhe daria a oportunidade de fazer algum turismo. Syd acompanhava-o ao congresso, e a toda parte. Não dava muito trabalho, e parece que as pessoas olhavam Simão com curiosidade e até alguma simpatia ao ver aquele apêndice misterioso a seu lado. Reencontrou Zdenek, que lhe cumprimentou efusivamente, com seu estilo espalhafatoso usual. “Tenho que lhe agradecer, meu amigo! Nossa conversa foi altamente inspiradora!”, exclamou enquanto tomava em suas mãos as de Tortorelli. Apresentaria um “importante trabalho” propondo uma lista de requisitos que um texto deve obedecer de modo que o leitor possa ter certeza de que o autor não está a zombar dele. Foi recebido com bastante frieza, e suscitou entre alguns mais sarcásticos o comentário de que o artigo não passava no teste que ele próprio propunha.

Simão passeou bastante pelas ruas de Bucareste acompanhado de Syd. Ao passar em uma rua menos movimentada na sua primeira noite na cidade, encontrou algumas prostitutas; eram muito atraentes. Com Syd a seu lado aquilo ia ser meio desajeitado, mas tinha muito desejo. Acompanhou uma delas até um hotel nas proximidades, e disse a Syd que esperasse numa poltrona no pequeno lobby enquanto subia com a mulher a um apartamento. O rapaz docilmente concordou. Simão fez tudo o mais rapidamente que pôde, e voltou com o coração na mão, de medo que o rapaz tivesse abandonado seu posto e se perdido no labirinto daquela cidade. Com grande alívio, constatou que ele ainda estava lá, entretido num jogo em seu computador de mão. Pediu à mulher que esperasse um pouco; hesitava se devia perguntar ao rapaz se também queria fazer sexo com ela. Manteve-a perto alguns instantes; o rapaz deu uma olhada de relance, e voltou a ocupar-se de seu jogo. Simão dispensou-a. Com um tapinha nas costas do sobrinho, propôs que partissem.

À noite em seu hotel, demorou a sentir sono. Pensou na sua vida. Era um sujeito irrelevante à ordem maior das coisas. Sua esfera de ação era tão limitada que tinha mínimas chances de fazer um grande mal ao mundo, ou um grande bem. Escrevia um artigozinho aqui, dava uma aulinha ali, as pessoas fingiam que se importavam, no fim todos ficavam satisfeitos e o mundo seguia girando no mesmo ritmo. Das pessoas que cruzaram seu caminho, nas escolas que frequentara, nas universidades em que lecionara, não havia ninguém importante, um grande nome. Dir-se-ia que ele estava posicionado em uma ilha no universo, uma singularidade. As coisas realmente importantes ocorriam fora dela, e a uma grande distância. Vivia num país irrelevante, fazia coisas irrelevantes. Ao menos gostaria de sentir algo forte. Se nada saía de sua ilha para o mundo, então que algo entrasse, algo dessa grandeza alheia. Mas isso não acontecia. Começava a suspeitar que esse universo de grandes coisas era também uma ilusão. As ilhas estavam em toda parte, todas insignificantes, todas isoladas. Meu Deus, uma pessoa pode ficar louca só de pensar nessas coisas. Tomou um comprimido e adormeceu profundamente.

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Passados alguns meses de convivência, Syd revelou-se uma companhia mais agradável do que Simão pudera a princípio supor. Um dia, tomado por um súbito acesso de consciência pesada, propôs voltar a chamá-lo por seu nome verdadeiro. Syd, ou melhor Roger, concordou. Eles davam-se tão bem que até seus gostos tornavam-se parecidos. Simão não mais se interessou em chamar mulheres para viver com ele. Quem precisa da dor de cabeça? Não lia tanta teoria agora, e publicava artigos raramente. Começou a escrever ficção mitológica sob pseudônimo, e seu primeiro romance até que teve uma saída razoável. Ouvia mais música e, a bem da verdade, seus gostos musicais transformaram-se radicalmente. Relembrava com desgosto suas preferências passadas. “Que ridículo eu era”, espantava-se. O primeiro item de seu acervo a ir para o lixo foi Webern. “Meu Deus, isso é a música ambiente do Inferno. Quanto tempo desperdiçado.”

Numa tranquila tarde de sexta-feira, após uma semana sem incidentes na Universidade, Simão propôs a Syd que ouvissem um disco juntos. Tinha trazido um baseado e podiam fumá-lo. Simão não permitia que Roger consumisse drogas com muita freqüência; seu estado mental, apesar de estável, não autorizava demasiados riscos. Mas um cigarrinho ocasionalmente não ia matar ninguém. Escolheram “The Jesus and Mary Chain”, um de seus primeiros álbuns. Era ideal para aquela tarde e aquele baseado, e a banda situava-se cronologicamente bem na interseção das gerações musicais de tio e sobrinho. “Então vai.” O ritmo letárgico da batida inundou o recinto. Deram uma tragada cada um. “Tum-tuntúmdum-túmdum-tuntúmdum...” Simão, já devaneando, perguntou-se se na Europa Central eles gostavam de ficção mitológica. “Listen to the girl...” Os congressos de fãs costumavam ser muito concorridos. “... as she takes on half the world...” Ouvira dizer que Varsóvia era uma bela cidade.

[Novembro de 2012]


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