Saturday, December 01, 2012
O precioso ridículo de Eça de Queirós. Entra Acácio
O trabalho abaixo foi apresentado como objeto de avaliação em uma disciplina do Prof. Paulo Franchetti, na Unicamp, no 1º semestre de 2012. A nota atribuída ao mesmo foi Sete e Meio. Nenhum comentário sobre o mesmo foi feito pelo professor ou pelo seu assistente.
“Falava-se nessa noite do Alentejo, de Évora e das suas riquezas, da capela dos Ossos, quando o conselheiro entrou com o paletó no braço. Foi-o dobrar solicitamente numa cadeira a um canto, e no seu passo aprumado e oficial, veio apertar as mãos ambas de Luísa, dizendo-lhe com uma voz sonora, de papo:
-- Minha boa Sra. D. Luísa, de perfeita saúde, não? O nosso Jorge tinha-me dito. Ainda bem! Ainda bem!
Era alto, magro, vestido todo de preto, com o pescoço entalado num colarinho direito. O rosto aguçado no queixo ia-se alargando até a calva, vasta e polida, um pouco amolgada no alto; tingia os cabelos, que duma orelha à outra lhe faziam colar por trás da nuca – e aquele preto lustroso dava, pelo contraste, mais brilho à calva; mas não tingia o bigode: tinha-o grisalho, farto, caído aos cantos da boca. Era muito pálido; nunca tirava as lunetas escuras. Tinha uma covinha ao queixo, e as orelhas grandes muito despegadas do crânio.
Fora, outrora, diretor-geral do Ministério do Reino, e sempre que dizia “El-Rei!”, erguia-se um pouco na cadeira. Os seus gestos eram medidos, mesmo a tomar rapé. Nunca usava palavras triviais; não dizia “vomitar”; fazia um gesto indicativo e empregava “restituir”. Dizia sempre “o nosso Garrett, o nosso Herculano”. Citava muito. Era autor. E sem família, num terceiro andar da Rua do Ferregial, amancebado com a criada, ocupava-se de economia política: tinha composto os ELEMENTOS GENÉRICOS DA CIÊNCIA DA RIQUEZA E SUA DISTRIBUIÇÃO, segundo os melhores autores, e como subtítulo: “Leituras do Serão!” Havia apenas meses publicara a RELAÇÃO DE TODOS OS MINISTROS DE ESTADO DESDE O GRANDE MARQUÊS DE POMBAL ATÉ NOSSOS DIAS, COM DATAS CUIDADOSAMENTE AVERIGUADAS DE SEUS NASCIMENTOS E ÓBITOS.
-- Já esteve no Alentejo, conselheiro? – perguntou-lhe Luísa.
-- Nunca, minha senhora – e curvou-se. – Nunca! E tenho pena! Sempre desejei lá ir, porque me dizem que as suas curiosidades são de primeira ordem.
Tomou uma pitada duma caixa dourada, entre os dedos, delicadamente, e acrescentou com pompa:
-- De resto, país de grande riqueza suína!
-- Ó Jorge, averigua quanto é o partido da Câmara em Évora – disse Julião do canto do sofá.
O conselheiro acudiu, cheio de informações, com a pitada suspensa:
-- Devem ser seiscentos mil-réis, Sr. Zuzarte, e pulso livre. Tenho-o nos meus apontamentos. Por quê, Sr. Zuzarte, quer deixar Lisboa?” (In: Queirós, Eça de. O Primo Basílio. São Paulo: Abril Cultural, 1972. Capítulo II, p. 29)
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O trecho de “O Primo Basílio” transcrito acima contém a primeira aparição (melhor dizendo, a primeira aparição síncrona com a narração) do personagem do Conselheiro Acácio no romance. Ele é descrito de maneira a revelar de antemão muitas das características que o marcam enquanto personagem. Essa descrição e o breve trecho de diálogo que se segue serão aqui objeto de algumas considerações.
A frase “Citava muito” justifica que o leitor procure sua confirmação ao longo do romance. Antes dessa aparição, Acácio aparece, em um evento relembrado pelo narrador, citando alguns versos aparentemente oriundos da tradição oral (“As neves que na fronte se acumulam / Terminam por cair no coração”). No capítulo IX lê-se outra citação que não parece ter autor definido (“Em lábios de coral, pérolas finas”) e, ainda no capítulo IX, versos que ele atribui a um poeta que não conheço (“Seu coração é nobre, e a fronte altiva / Revela-lhe da alma a pura essência”). Por fim, no capítulo XI, durante o jantar em celebração pelo recebimento de um título, o narrador informa que Acácio cita o “Eurico” (que suponho ser o romance de Herculano), Bocage, e a si mesmo. É interessante analisar o seguinte ponto: essa quantidade de citações justifica a afirmação inicial do narrador (“citava muito”)? É difícil responder a essa pergunta. Em todo caso, vê-se o romance no seguinte beco sem saída: se se julgar que é realmente um número alto de citações, qual era a necessidade de informar previamente o leitor desse fato? Por outro lado, se o número de citações parecer baixo ou razoável, a afirmação inicial parecerá exagerada. Em suma, resulta que é sempre um erro descrever esse tipo de característica de um personagem. É preferível que o autor inclua a característica no comportamento do personagem e confie no julgamento do leitor, ou simplesmente a omita por não ser relevante à narrativa.
Um ponto a se considerar diz respeito à descrição física de Acácio. Descrevem-se detalhes de seu rosto e cabeça, e um problema de interpretação se impõe: existe comicidade nessa descrição? Mais ainda: dado que a compleição moral de Acácio é cômica, foi intenção do narrador criar uma compleição física que com aquela se coadunasse? Os preceitos do new criticism diriam que é falacioso procurar intenções autorais, mas o problema permanece de qualquer jeito. Ao ignorarem-se intenções, o leitor vê-se às voltas, na melhor das hipóteses, com a questão de o que fazer com um parágrafo que lhe oferece, entre outros detalhes aparentemente inúteis, a covinha no queixo de um personagem. Deve ser o tal “efeito de realidade” postulado por Barthes.
Passando à descrição da história e da psicologia de Acácio, apresentam-se novos desafios interpretativos. Após um exagero trivialmente refutável (“nunca usava palavras triviais”) e uma antecipação redundante (“era autor”), chama a atenção a seguinte enunciação: “amancebado com a criada, ocupava-se de economia política”. Obviamente não é neutra a justaposição; se estão as ideias na mesma frase, uma associação é implicada. E o que se pode inferir da mesma? Que há algo de necessariamente incompatível e/ou reprovável em ser amancebado com a criada e ocupar-se de economia política? É difícil achar outro caminho interpretativo. É certo que no desenvolvimento ulterior do romance o enfoque abarca também a hipocrisia do personagem, já que este oculta o relacionamento, ao mesmo tempo em que finge uma defesa de valores tradicionais. Mas o trecho analisado dificilmente poderia ser lido sob essa luz, pois nada há nele ou em torno dele que se refira ao mencionado ocultamento. Além disso, não existe uma relação próxima dessas questões morais com a “economia política”.
É possível, nesse estágio da análise, chegar a algumas conclusões sobre o nível e o estilo da sátira de Eça de Queirós contida no personagem do Conselheiro Acácio. Não se vê nada aqui que justifique a opinião do próprio Eça na carta a Teófilo Braga que figura como adendo ao romance. Nessa carta, Eça defende o estatuto “revolucionário” de sua obra. Acácio e seus colegas são os “empecilhos” à revolução. Porém, o que se depreende do que foi analisado até agora do trecho escolhido do romance (e que será, diga-se de passagem, confirmado no resto deste) é a presença de uma comicidade com parentesco na farsa; o grotesco da aparência física alia-se a trejeitos comportamentais para compor um personagem que o autor decretou de antemão ser ridículo. Os hábitos sexuais são invocados com a mesma intenção burlesca, e é realmente indecidível se o que se condena é a hipocrisia em si, ou se a hipocrisia surge apenas como mais um elemento de comicidade perante um comportamento sexual, esse sim, condenado ou ridicularizado.
É claro que existem elementos de cunho realmente político abordados no romance, e está-se lidando aqui apenas com uma descrição introdutória de um personagem. Mas o fato é que essa descrição existe e isso implica que a sátira exclusivamente política não foi julgada suficiente pelo autor. Ademais, é preciso admitir, embora isso talvez seja irrelevante para a presente análise, que não se entende bem por que as características politicamente liberais de Acácio são objeto de sátira. Ou talvez, justamente, essa admissão não seja tão irrelevante; é razoável especular que haja uma expectativa, por parte do autor, da existência uma porção expressiva de leitores que precisem de uma comicidade mais “baixa”, mais “fácil”, algo que torne a vilania do personagem mais compreensível e por tabela torne vilãs as suas convicções políticas.
Seria tedioso continuar a análise frase a frase como foi feito até agora; na sequência, vê-se que a narração explora preferencialmente a obsessão de Acácio com informações (“datas cuidadosamente averiguadas”; “grande riqueza suína”; “nos meus apontamentos”). Mais uma vez, busca-se um efeito cômico pelo exagero, mas o alcance da sátira merece ser examinado. O comportamento de Acácio pode parecer socialmente inadequado em relação aos padrões de adequação social do leitor. Dado que não parece haver grande inadequação face aos padrões da sociedade que o cerca, o alvo da sátira passa a ser essa sociedade como um todo. Por outro lado, é difícil inferir qualquer laivo de torpeza moral a partir dos traços de comportamento e conversação apresentados. Isso, mais os elementos anteriormente analisados, parece caracterizar uma sátira ligeira, em que elementos oriundos da farsa são trabalhados de maneira algo mais refinada que na farsa clássica e fazem a ponte com a crítica política.
Qual é então a razão para a presença do conselheiro Acácio em O Primo Basílio, convencionalmente visto como um romance sobre o adultério? Talvez não seja muito diferente da razão para a presença de todos os outros personagens secundários nesse romance, todos eles de forte tipificação, e com algum conteúdo satírico, às vezes mais para o burlesco, como D. Felicidade, às vezes mais sombrios, como Julião Zuzarte. Em sua totalidade, eles compõem um mosaico da sociedade lisboense da época, dentro da qual Eça procura contextualizar o adultério. É um consenso tácito, no entanto, que Acácio é o mais divertido desses personagens. É muito importante, por motivos inclusive estéticos, que ele esteja no romance. Sem o seu alívio cômico, O Primo Basílio estaria dominado de maneira sufocante pelas hesitações, chiliques e desmaios de Luísa, uma das personagens mais desagradáveis da história da literatura universal, e isso faria de O Primo Basílio por sua vez um romance igualmente desagradável.
Uma questão interessante é se a felicidade imperturbada de Acácio ao longo de todo o romance chega a perturbar e escandalizar o leitor; outra questão é se a morte de Luísa o perturba ou se, muito pelo contrário, é grandemente bem-vinda, e mesmo necessária e, de uma maneira um tanto inusual, catártica (é a morte de uma grande chata).
A revolução esperada por Eça de Queirós não veio, mas seu trabalho em O Primo Basílio foi um sucesso estrondoso (com exceção de “conservadores” empedernidos como o crítico Machado de Assis). Ao elaborar um romance em que a vileza ou a parvoíce dão o tom, e a bondade é a exceção que confirma a regra [1], e ser extremamente bem recebido nessa mesma sociedade, Eça parece obedecer à fórmula com que muito depois dele o então crítico de cinema François Truffaut definiu o cinema de prestígio das décadas de quarenta e cinqüenta: “Filmes anti-burguesia feitos pelos burgueses, para os burgueses” [2]. Talvez aí esteja a chave que decifra o sentido último de Acácio como personagem. Acácio é o hipócrita démodé. Eça de Queirós personifica a atualização das estratégias de hipocrisia de acordo com os novos tempos. A essência é a mesma, e nada mais apropriado que colocar na boca desse ilustre escritor palavras que ele naturalmente nunca poderia proferir: “Acácio sou eu.”.
Referências:
[1] Muito sintomática é a observação do próprio Eça na mencionada carta apensa ao romance: “e às vezes quando calha, um pobre bom rapaz (Sebastião)” [grifo meu]. É realmente uma infelicidade muito grande ser bom, não?
[2] Apud: Thomajan, Dale. The Dirty Dozen. In http://my.primehome.com/theodorospa/thomajan.htm