Saturday, December 08, 2012

 

Algumas considerações em torno da relação entre valor e popularidade em literatura


Mais um ensaio escrito na condição de aluno. Data da composição: 1º semestre de 2009.

As considerações de valor acerca de obras literárias e seus autores fazem parte do escopo da crítica literária, uma atividade que se especializou ao longo da história da literatura e que, portanto, segue algumas regras. A importância atribuída pela crítica literária a um autor é baseada em características intrinsecamente literárias; o número de leitores atribuído a esse autor não é levado em conta. Por outro lado, o número de leitores de um autor e a persistência de sua aceitação podem ser considerados indícios da provável importância do autor; por exemplo, Shakespeare ainda é lido e encenado, o que tem correlação com sua importância literária. Essa elevada popularidade não é, certamente, causa da alta estima gozada por Shakespeare entre críticos, embora seja, em parte, admitidamente consequência desta.

No caso de escritores ainda em atividade, como é o caso de Coelho, existe uma espécie de pré-avaliação, ou pré-conceito, que é formado em relação a eles por críticos e consumidores de literatura em geral, o qual deriva de uma concepção do modus operandi do mercado, e de outros fatores correlatos; a teoria do sociólogo Pierre Bourdieu é um dos instrumentos que se têm mostrado úteis no entendimento desse e outros fenômenos ligados ao funcionamento do campo literário contemporâneo.

Segundo o modelo de Bourdieu, o campo literário estrutura-se em polos opostos, cada um dos quais caracterizando-se por uma postura em relação ao mercado. De um lado, existem os autores da chamada vanguarda, os quais se caracterizam pela inovação, e ostentam um aparente desprezo pelo mercado; esses autores têm reduzido número de leitores inicialmente, mas, se forem bem sucedidos, impor-se-ão, e ocuparão um lugar em seu nicho de mercado; no outro polo, estão os autores que buscam um sucesso de vendas imediato, e com duração curta. É neste último polo que Coelho se situa. Note que, quando se fala em "duração curta", não temos uma quantidade fixa de tempo em mente; há vários fatores a considerar. Por exemplo, Coelho já lançou vários livros, os quais geralmente têm vendas excepcionais durante alguns meses após o lançamento, e depois sofrem uma queda; no entanto, mesmo seus livros mais antigos, lançados há mais de duas décadas, ainda estão em catálogo. O ciclo de vida de seu sucesso ainda não terminou. Mas o importante é que seu objetivo principal é o sucesso imediato, sendo que, obviamente, a prolongação desse sucesso também é desejada. Do ponto de vista do público consumidor de Coelho, seu sucesso funciona como auto-alimentador, ou seja, existe uma mentalidade que diz que, "se vende, é porque é bom, portanto comprarei".

Do ponto de vista dos agentes no polo oposto ao de Coelho no campo literário, o sucesso deste autor e sua evidente procura pelo mesmo, através de campanhas publicitárias milionárias e outros artifícios, atua repulsivamente, funcionando como um atestado de baixa qualidade literária. De certa forma, isso condena o autor de mais-vendidos à eterna exclusão da consideração crítica. Digamos, por hipótese – mesmo que remota –, que Coelho escrevesse um livro bom – julgando por parâmetros críticos prevalentes hoje em dia, sejam eles quais forem; há grandes chances de que ninguém ficasse sabendo disso. Exceto, é claro, os milhões que o leriam; mas a opinião destes é sempre essa, com pequenas variações, ou seja, que seus livros são bons; portanto, nada destacaria esse livro dos demais, e, no futuro, quando, supostamente, Coelho tiver sido completamente esquecido, também o terá sido sua única hipotética contribuição notável para a literatura.

De todo modo, a pergunta "se é tão bom, por que ninguém lê?" – e seu complementar, "se é tão ruim, por que todo mundo lê?" – merece uma resposta, ou pelo menos uma tentativa de resposta. Pode-se argumentar que o valor estético não é mensurável estatisticamente, ou seja, o fato de um único leitor achar valor em uma obra não é menos significativo do que um milhão deles o fazerem. Afinal, a leitura é sempre uma atividade individual, e um milhão de leitores são apenas um milhão de indivíduos, cada um deles com sua experiência individual, a qual não se soma às dos outros. Se for assim, no entanto, consensos acadêmicos serão tão irrelevantes quanto consensos populares e, levando a lógica exposta às suas últimas consequências, pouco importará se este autor foi "consagrado" e aquele "caiu em desgraça". Até certo ponto, não há como negar essas proposições: o uso de consensos e cânones como referências sagradas e indiscutíveis tem pouco mais valor do que a consulta à lista de mais-vendidos. Há uma certa falácia, no entanto, no modo como a questão foi colocada acima, que é preciso desmascarar. Em verdade, o propósito da comunidade literária, em seu segmento crítico, não deve ser o de estabelecer padrões e baluartes, sendo que, muitas vezes, cabe a ela demoli-los. Através do diálogo entre seus pares, deve perseguir o objetivo de abalar crenças petrificadas que não se justifiquem, venham elas de onde venham. O elogio e a construção de reputações deve existir, naturalmente, mas dentro desse mesmo paradigma; ou seja, a promoção de um autor da condição de "desconhecido" ou "maldito" àquela de "interessante" ou "importante" não deixa de funcionar como uma crítica aos valores ultrapassados ou mesmo à preguiça que porventura sejam responsáveis pela falta de atenção previamente dada ao referido autor. No caso de autores célebres, a atenção crítica presente só faz sentido ao propor novas leituras desse autor; é o caso de Shakespeare, que continua suscitando novas leituras, por exemplo as fascinantes análises de Marc Shell para Hamlet e Medida por Medida. Se, como nesse caso, o constantemente renovado interesse por um autor servir para cimentar a reputação do mesmo, isso será como uma consequência natural, não buscada, da atividade crítica.

Referências:

Bourdieu, Pierre. As regras da arte.

Dolan, Frederick M. Review of Marc Shell's "Children of the Earth: literature, politics, and nationhood". Political Theory 24:1 (1996). Disponível em:  <http://homepage.mac.com/WebObjects/FileSharing.woa/wa/Shell_review.pdf.pdf-zip.zip?a=downloadFile&user=fmdolan&path=/Public/Book%20Reviews/Shell%20review.pdf>

Shell, Marc. Preface to "The end of kinship: 'Measure for measure', incest, and the ideal of universal siblinghood". Disponível em <http://www.people.fas.harvard.edu/~mshell/Shell.%20EK.Front%20Matter.pdf>

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