Monday, July 25, 2011

 

Tudo que É Sólido Desmancha no Ar: Três Contos de Cortázar

I
Este trabalho vai tentar analisar e encontrar pontos em comum entre três contos de Julio Cortázar: “A Senhorita Cora”, “Instruções para John Howell”, e “Cartas de Mamãe”.
Em “A Senhorita Cora” (1966), Julio Cortázar conta a história de um adolescente que se submete a uma cirurgia da qual surgem complicações; a relação entre o paciente e sua enfermeira da noite (Cora) é explorada em suas diversas nuances psicológicas. Cora resiste inicialmente a um envolvimento pessoal com o adolescente. O conto expõe o processo de erosão da couraça emocional de Cora, que acaba se oferecendo num gesto de amor em que desaparecem as barreiras profissionais, de classe e de diferença de idade. O conto utiliza uma técnica de mudança de narrador, sempre em primeira pessoa; o ponto de vista, dessa forma, passeia entre as personagens. Esse procedimento formal apresenta ao leitor uma realidade em contínua dissolução e redefinição, provocando no mesmo uma sensação de instabilidade e insegurança.
Em “Instruções para John Howell”, temos a insólita história de um espectador em um teatro que é abordado na platéia e levado aos bastidores; lá ele recebe a estranha proposta de participar da peça a que estava assistindo; ao participar desse jogo, começa a temer que algo de sinistro está em andamento. O conto explora a fronteira entre ficção e realidade.
Em “Cartas de Mamãe”, temos um casal de argentinos vivendo em Paris; eles mantêm contato com a terra natal através das cartas da mãe do rapaz. São também assombrados pelas memórias do irmão do rapaz, que morreu. A situação revela sua precariedade quando em uma carta a mãe começa a falar do morto como se estivesse vivo. Isso desencadeia uma crise na vida do casal, que desembocará na sua rendição ao delírio da mãe.
Nos três contos mencionados, temos uma situação inicial de aparente normalidade que é destruída pela introdução de um elemento irracional. A realidade das personagens sofre então uma transformação radical em que um elemento invasor se instala no centro de suas vidas. Fica a pergunta, ao final: até que ponto o elemento estranho não estava de fato já contido, de maneira mais ou menos adormecida, na própria textura aparentemente estável da configuração inicial das vidas das personagens?
A senhorita Cora, inicialmente ancorada em sua postura de frieza profissional, e em um relacionamento aparentemente estável com o colega anestesista, vê-se gradualmente levada a uma dedicação afetiva a um paciente que provavelmente morrerá em poucos dias; por que ela o faz? Não existe talvez resposta puramente racional para isso; exceto que opera nela a atração do outro, enquanto território não explorado, cheio de perigos, não físicos, mas certamente psíquicos.
John Howell, por sua vez, no palco – ao qual foi levado misteriosamente – é como um estranho em um país estranho; todas as regras que minutos atrás regiam a sua vida são abolidas; ele sente-se subitamente responsável pelo destino de uma atriz que parece correr risco de vida.
Já os protagonistas de “Cartas de Mamãe” vivem o exílio de forma concreta, ao qual somarão ainda o exílio metafórico na fantasia da mãe, que trouxe de volta à vida o irmão do protagonista.[1]
II
Uma análise de dois dos contos mencionados (“A Senhorita Cora” e “Cartas de Mamãe”) parece mostrar uma dicotomia entre o mundo racional e o que jaz fora dele. Mas esse mundo da razão oferece uma estabilidade puramente ilusória, que parece ser fruto de uma conformação a um padrão. O que vemos sob a superfície são as contradições inerentes a situações de compromisso: relações amorosas pouco significativas (Cora e seu anestesista), sentimentos de culpa mal resolvidos (“Cartas de Mamãe”).
A dicotomia presente em “Instruções para John Howell” parece de uma ordem ligeiramente diferente, opondo realidade e ficção. O que Cortázar parece fazer aqui é refletir sobre o conceito de arte como meio de escapar à realidade. O conto leva essa fuga às últimas conseqüências; o fato de que a experiência converte-se em um pesadelo parece ser um modo de Cortázar dizer justamente que a arte não deve ser escapismo, mas, ao contrário, uma forma de integrar a pessoa à realidade, aí incluída a realidade social.

III
Existe uma dimensão política nos três contos em questão; eles alegorizam a experiência do homem moderno, que é via de regra sujeito a pelo menos um dentre dois tipos de dominação: de um lado o poder de governos autoritários ou mesmo totalitários que anulam explicitamente o cidadão; de outro as democracias ditas liberais em que o poder econômico ocupa todos os espaços sociais, impondo de maneira às vezes invisível modos de pensar e de viver que servem aos interesses do grande capital. O que Cortázar faz em sua ficção é criar situações que descrevem processos de dominação implícitos, que contam de algum modo com a cumplicidade do dominado.
Cortázar abstém-se de tecer julgamentos de valor; em “A Senhorita Cora”, por exemplo, o processo pelo qual passa a protagonista pode ser encarado mais como libertação do que como opressão. Cora é como que seduzida pela dor de seu paciente, mas não se sabe de onde vem essa força que a arrasta; talvez de dentro de si mesma. É como se Cortázar exemplificasse aqui o poder em sua face libertadora; há um paradoxo, e uma ambigüidade, que Cortázar preserva.
Em “Cartas de Mamãe” o agente de poder seria identificável à primeira vista como a mãe; aqui também há alguma ambigüidade; a situação final é indefinida: o casal teria sido dominado afinal pela mãe do rapaz, ou libertado enfim do peso da culpa?
“Instruções para John Howell” é talvez o mais soturno dos três contos; existe uma atmosfera de opressão sensível na situação por que passa John Howell. Peter Standish identifica aqui uma vertente que perpassa a obra de Cortázar: a preocupação com forças controladoras anônimas ou invisíveis [2]. Como é regra em Cortázar (ao menos em seus contos), no entanto, a ambigüidade permanece, pois a experiência descrita pode ser também encarada como um despertar: o protagonista sai de seu torpor de espectador passivo e é obrigado a tomar decisões; o mundo da ficção é, no fundo, tão ou mais real do que o da assim chamada “realidade”. Essas considerações acabam levando o leitor do conto a refletir sobre o peso da literatura no que ele vive, e sobre o peso da vida no que lê.

Referências
[1]Uma outra visão da questão do exílio na obra de Cortázar é encontrada em:
MONTAÑÉS, Amanda Pérez. Vozes do exílio e suas manifestações nas narrativas de Julio Cortázar e Marta Traba. Tese de Doutorado. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 2006.
[2] STANDISH, Peter. Understanding Julio Cortázar. Columbia: University of South Carolina Press, 2001. p.150

[O texto deste 'post' foi submetido como um dos requisitos para obtenção de créditos em uma disciplina sobre literatura latino-americana ministrada pela profª Miriam Gárate.]

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