Thursday, October 15, 2009
School is Paradise, volume 2 (in Portuguese)
Comentários comparativos sobre três textos de teoria poética.
Os textos analisados, respectivamente de Friedrich, de Man, e Berardinelli, são especificados nas referências no final deste trabalho. A seleção dos textos é do professor Marcos Siscar, que solicitou a análise comparada dos mesmos a seus estudantes.
Em primeiro lugar, é preciso notar um problema semântico importante na comparação dos textos, que é o fato de que Friedrich e Berardinelli usam o termo “moderno” (e seus derivados) com um significado meramente temporal, e de Man usa-o com um outro significado. Para Friedrich e Berardinelli, poesia moderna (como aliás está explícito, no caso de Friedrich, no subtítulo do seu livro) significa poesia do século XX, com um recuo não muito preciso até a metade do século XIX, e, no caso de Friedrich, limitando-se até por volta da metade do século XX, que é quando seu livro foi publicado. De Man explicita o sentido adotado por ele no começo de seu texto, onde ele deixa claro que “o termo ‘modernidade’ não é usado numa simples acepção cronológica como sinônimo aproximado de ‘recente’ ou ‘contemporâneo’ a que se acrescentou uma ênfase valorativa positiva ou negativa”. É interessante notar que o sentido adotado por ele se aproxima daquele adotado por Baudelaire em seu texto “O Pintor da Vida Moderna”. De Man ressalva que, por motivos pragmáticos, a consideração da literatura recente é favorecida, mas que isso obscurece o sentido teórico de Modernidade, que seria designativo de qualquer literatura que possibilite uma partilha com o leitor de seu “sentido de um presente temporal”. Baudelaire coloca a questão em termos de “extrair o eterno do transitório”.
Feita essa distinção semântica preliminar, faremos inicialmente um resumo das ideias de Friedrich, posto que elas são discutidas nos outros dois textos. Friedrich afirma que a obscuridade é uma característica da poesia europeia do século XX. Essa obscuridade é, segundo ele, proposital, com o objetivo de gerar tensão e estranhamento. As imagens ou significados evocados distanciam-se da realidade usual, criando uma nova realidade, absurda e anormal. A descrição de tal poesia tem que ser feita, ainda segundo Friedrich, por categorias negativas: “desorientação, dissolução do que é corrente, ordem sacrificada, incoerência, fragmentação, reversibilidade, estilo de alinhavo, poesia despoetizada, lampejos destrutivos, imagens cortantes, repentinidade brutal, deslocamento, modo de ver astigmático, estranhamento”. Traçando a pré-história desses conceitos, Friedrich encontra seu germe em Rousseau e Diderot, e a seguir, mais enfaticamente, em Novalis. O Romantismo deu mais um passo em direção ao moderno, introduzindo o exagero e a afetação; um elemento romântico, no entanto, será deixado de lado na época moderna: o sentimento. O grotesco foi outro elemento importante a ser absorvido na modernidade, com sua valorização do feio e do disforme. Essa, em resumo, é a visão de Friedrich.
O texto de Berardinelli, embora atribuindo um certo fascínio ao livro de Friedrich, faz duras restrições a que se o tome como um estudo abrangente da poética do século XX. Segundo o autor italiano, as observações de Friedrich referentes à irracionalidade ou ‘desrealização’ da poesia moderna são válidas para um conjunto minoritário de poetas do século XX (e fim do XIX), particularmente os pertencentes à escola simbolista, cujo representante maior foi Mallarmé, e aqueles que posteriormente foram influenciados de maneira significativa por aquela vertente poética.
Berardinelli cita Eliot na descrição de três tipos de voz poética, dos quais apenas um, o estritamente lírico, ou seja, o poeta falando a si mesmo ou a ninguém, é característico do universo poético contemplado por Friedrich. Os outros dois tipos mencionados por Eliot, a saber, o poeta falando diante de um auditório, e o poeta criando uma personagem dramática, são destacados por Berardinelli como pelo menos igualmente representativos da modernidade, inclusive na própria obra de Eliot, a qual, embora não prime pelo uso convencional da linguagem, faz necessariamente referência a “um suporte externo, cultural, realista e comunicativo” (‘correlativo objetivo’). Segundo Berardinelli, a poesia do século XX exibe mesmo uma tendência a contrapor-se à estética simbolista, perceptível em muitos poetas ignorados ou desvalorizados na análise de Friedrich. Já se mencionou Eliot, mas há muitos outros, inclusive representantes de poéticas nas quais o hermetismo nem se encontra presente, como Whitman e Brecht.
Berardinelli refuta a argumentação de Friedrich em pontos importantes. A multiplicidade estilística e a fragmentação, características encontráveis em Eliot e Apollinaire, longe de serem – conforme argumenta Friedrich – expressões de um divórcio da realidade, seriam técnicas empregadas com o intuito de retratar uma certa fragmentação da própria realidade social e cultural do século XX. Segundo Berardinelli, a análise de Friedrich peca, em última instância, por ser injustificadamente a-histórica. Cumpre notar que Friedrich, na realidade, não é tão a-histórico como Berardinelli faz crer, e, no capítulo 2 de seu livro, explica a perda de representação e a perda do eu como uma fuga da realidade desagradável do século 19. As fantasias e absurdos “tornam-se aspectos de uma irrealidade em que Baudelaire e seus seguidores querem penetrar, para evitar uma realidade cada vez mais restritiva.” (citado por de Man, p. 194). De Man considera a explicação de Friedrich “grosseira, irrelevante e pseudo-histórica”.
Berardinelli cita a seguir Heller e Adorno, os quais postulam a inevitabilidade da conexão da poesia com a realidade; desse modo, diz Adorno, o próprio ‘anti-realismo’ acaba sendo uma tomada de posição com relação a uma realidade sentida como inaceitável ou insuportável. A individuação extremada acaba estabelecendo paradoxalmente uma comunicação universal, uma forma eficaz de expressão autêntica e não corrompida pelas formas sociais de dominação e despersonalização. Embora mais elaborada teoricamente, a posição de Adorno não chega a contradizer a explicação de ‘fuga da realidade’ de Friedrich.
Adorno, citado por Berardinelli, postula ainda a existência de uma corrente poética que de certo modo renuncia à individuação em favor de uma “força coletiva”; Lorca e Brecht são citados como expoentes dessa corrente.
Vamos agora tecer alguns comentários sobre o artigo de de Man, o qual, após dialogar com conceitos de Friedrich e Baudelaire, envereda por teorizações pessoais. Note-se preliminarmente que o diálogo de de Man com o texto de Friedrich não deixa de ser válido, mesmo que eles tenham conceitos diferentes do termo ‘moderno’. Esse diálogo centra-se na crítica que de Man faz sobre algumas afirmações específicas de Friedrich sobre poesia recente, que postulam uma tendência à ‘desrealização’, entendida como resistência à redução do poema a significados predeterminados; de Man argumenta sobre uma base concreta, que é o poema Le tombeau de Verlaine, de Mallarmé, o qual é submetido a uma breve exegese.
Inicialmente, de Man faz um resumo de algumas teorias da modernidade, começando pelas ideias de Yeats, que estabelece uma diferenciação entre poesia de representação (ou mimese), e poesia sem vínculo com a representação, a qual encarna segundo Yeats a modernidade. Aquela tem o espelho como símbolo, enquanto que a última é simbolizada pela lâmpada. Citando de Man, “a poesia moderna é descrita por Yeats como a expressão consciente de um conflito no interior da função da linguagem enquanto representação e no interior da concepção da linguagem como ato de uma vontade autônoma.” Friedrich escreveu sobre a poesia moderna de maneira “surpreendentemente análoga” a Yeats. Em última análise, ambos veem a obscuridade da poesia moderna como decorrente da perda da sua função representacional. “Perda de realidade representacional e perda do eu são inseparáveis”, acrescenta de Man.
De Man, ao contrário de Friedrich e também de Berardinelli, recusa-se a endossar a categorização tradicional da poesia simbolista como estritamente abstrata ou avessa à representação. Armado de um conhecimento bastante erudito da obra de Mallarmé e Verlaine, e de recursos hermenêuticos sofisticados como associações de imagens e atribuição de sentidos metafóricos, ele convincentemente decifra algumas estrofes do poema Le tombeau de Verlaine em termos absolutamente coerentes e consistentes com declarações conhecidas de Verlaine sobre si mesmo, e com a visão do próprio Mallarmé sobre a poesia. Basicamente, Verlaine, secundado pelo próprio Mallarmé, opunha-se a visões sentimentais e cristãs sobre a morte, as quais reputa como superficiais e obscurecedoras do real legado literário do poeta.
De Man baseia-se na já mencionada oposição conceitual entre linguagem representacional e linguagem alegórica para em seguida refutar a tese de Stierle de que Mallarmé não pode ser entendido como poeta representacional. O eu poético em Mallarmé, diz de Man, embora em casos extremos seja “muito impessoal, desencarnado e irônico”, raramente ou nunca pode ser considerado inexistente.
A hipótese da evolução histórica em direção a uma rarefação da representação e do eu, tal como postulada por Friedrich e Jauss, tem, na visão de de Man, um apelo psicológico primitivo.
A relação entre a posteridade e Baudelaire é, segundo de Man, um exemplo de como as teorias têm a tendência de ignorar aspectos da realidade que as contradizem. Em particular, de Man aponta a falta de atenção dada por Mallarmé ao Baudelaire tardio de Petits poèmes en prose, o qual exibe forte característica alegórica e dificuldade de compreensão.
Generalizando a sua argumentação, de Man postula que toda poesia lírica é ambivalente, sendo simultaneamente representacional e não-representacional. A alegorização do poema é algo que não pode ser evitado, pois está na própria raiz do discurso poético, quer o poeta tenha ou não consciência disso. As faces alegórica e representacional são, no entanto, como que inimigas entre si: o elemento representacional é necessário para possibilitar um primeiro acesso ao poema, o qual, no entanto, em seguida ‘convida’ a uma interpretação alegórica que nega a interpretação representacional anterior. A interpretação alegórica adquire imediatamente um status representacional que é base para uma nova interpretação alegórica, num ciclo infinito em que cada estágio anula o anterior.
Prosseguindo, de Man nega a existência de um princípio que leva “da história à modernidade”. Sua argumentação nesse ponto é bastante obscura, seja devido ao texto em si ou à tradução usada. O que pode significar a afirmação de que “a alegoria pode apenas repetir cegamente o seu modelo prévio, sem uma compreensão definitiva”?
Sua conclusão é que “quanto menos compreendemos um poeta, (...) maiores são as possibilidades de que ele seja verdadeiramente moderno; isto é, diferente daquilo que – erradamente – pensamos que somos [itálico nosso].” Como interpretar essa conclusão, seja em si mesma ou em relação à postulação inicial de modernidade como partilha de um “sentido do presente temporal”? (Nota: o termo que pusemos em itálico [somos] parece ser um erro de tradução; a palavra correta parece ser “são”.)
Teceremos alguns comentários finais sobre os textos analisados. O livro de Friedrich (do qual a presente análise considera apenas uma parte), por mais contestado que seja, permanece como um eixo importante em torno do qual, ao menos em parte, os outros dois textos giram. Seu conceito básico é a ausência da função de representação na poesia moderna, a qual é responsável pela sua obscuridade e estranheza. Berardinelli adota um enfoque muito mais amplo, admitindo no entanto a validade da análise de Friedrich para um grupo restrito de poetas, encabeçados por Mallarmé. Não há unidade na análise de Berardinelli; tendo por objetivo um apanhado abrangente da poesia do século XX, ele adota uma postura enciclopédica, baseada principalmente em citações de outros críticos, cobrindo principalmente poetas aos quais a aplicação dos conceitos de Friedrich tem validade parcial, necessitando ser socorridos por elementos históricos e sociais, e poetas aos quais a análise de Friedrich simplesmente não se aplica (p. ex., Whitman). De Man, por sua vez, apresenta um trabalho mais ambicioso, em que, na esteira de Baudelaire, postula a modernidade como um conceito teórico atemporal. Ao contrário de Berardinelli, não lhe interessa nem questionar a ausência de outros tipos de poesia no estudo de Friedrich, nem introduzir elementos históricos ou político-ideológicos para enriquecer essa análise. Seu enfoque é muito mais relacionado a uma alegada essência poética, em termos da dualidade representação/alegoria. De Man não é bem sucedido, ou ao menos não é suficientemente claro, no que concerne à explicitação de uma ligação entre sua definição inicial de modernidade e suas conclusões apoiadas na ambivalência poética e seu efeito na recepção.
REFERÊNCIAS
BAUDELAIRE, Charles. O pintor da vida moderna. In: Poesia e prosa. Organização: Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.
BERARDINELLI, Alfonso. As muitas vozes da poesia moderna. In: Da poesia à prosa. Organização de Maria Betânia Amoroso. Tradução de Maurício Santana Dias. Rio de Janeiro: Cosac & Naify, 2007.
DE MAN, Paul. O ponto de vista da cegueira. Ensaios sobre a retórica da crítica contemporânea. Tradução de Miguel Tamen. Lisboa: Angelus Novus & Cotovia, 1999. Título original: Blindness and insight. Essays in the rhetoric of contemporary criticism. 2nd ed., revised, 1971.
FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da Lírica Moderna (da metade do século XIX a meados do século XX). Capítulo I: Perspectiva e retrospecto. Tradução: Marise M. Curioni. Tradução dos poemas: Dora F. da Silva. São Paulo: Duas Cidades, 1991. Tradução a partir da 2ª ed. em alemão, 1966. [1ª ed. do texto original, 1956]
Os textos analisados, respectivamente de Friedrich, de Man, e Berardinelli, são especificados nas referências no final deste trabalho. A seleção dos textos é do professor Marcos Siscar, que solicitou a análise comparada dos mesmos a seus estudantes.
Em primeiro lugar, é preciso notar um problema semântico importante na comparação dos textos, que é o fato de que Friedrich e Berardinelli usam o termo “moderno” (e seus derivados) com um significado meramente temporal, e de Man usa-o com um outro significado. Para Friedrich e Berardinelli, poesia moderna (como aliás está explícito, no caso de Friedrich, no subtítulo do seu livro) significa poesia do século XX, com um recuo não muito preciso até a metade do século XIX, e, no caso de Friedrich, limitando-se até por volta da metade do século XX, que é quando seu livro foi publicado. De Man explicita o sentido adotado por ele no começo de seu texto, onde ele deixa claro que “o termo ‘modernidade’ não é usado numa simples acepção cronológica como sinônimo aproximado de ‘recente’ ou ‘contemporâneo’ a que se acrescentou uma ênfase valorativa positiva ou negativa”. É interessante notar que o sentido adotado por ele se aproxima daquele adotado por Baudelaire em seu texto “O Pintor da Vida Moderna”. De Man ressalva que, por motivos pragmáticos, a consideração da literatura recente é favorecida, mas que isso obscurece o sentido teórico de Modernidade, que seria designativo de qualquer literatura que possibilite uma partilha com o leitor de seu “sentido de um presente temporal”. Baudelaire coloca a questão em termos de “extrair o eterno do transitório”.
Feita essa distinção semântica preliminar, faremos inicialmente um resumo das ideias de Friedrich, posto que elas são discutidas nos outros dois textos. Friedrich afirma que a obscuridade é uma característica da poesia europeia do século XX. Essa obscuridade é, segundo ele, proposital, com o objetivo de gerar tensão e estranhamento. As imagens ou significados evocados distanciam-se da realidade usual, criando uma nova realidade, absurda e anormal. A descrição de tal poesia tem que ser feita, ainda segundo Friedrich, por categorias negativas: “desorientação, dissolução do que é corrente, ordem sacrificada, incoerência, fragmentação, reversibilidade, estilo de alinhavo, poesia despoetizada, lampejos destrutivos, imagens cortantes, repentinidade brutal, deslocamento, modo de ver astigmático, estranhamento”. Traçando a pré-história desses conceitos, Friedrich encontra seu germe em Rousseau e Diderot, e a seguir, mais enfaticamente, em Novalis. O Romantismo deu mais um passo em direção ao moderno, introduzindo o exagero e a afetação; um elemento romântico, no entanto, será deixado de lado na época moderna: o sentimento. O grotesco foi outro elemento importante a ser absorvido na modernidade, com sua valorização do feio e do disforme. Essa, em resumo, é a visão de Friedrich.
O texto de Berardinelli, embora atribuindo um certo fascínio ao livro de Friedrich, faz duras restrições a que se o tome como um estudo abrangente da poética do século XX. Segundo o autor italiano, as observações de Friedrich referentes à irracionalidade ou ‘desrealização’ da poesia moderna são válidas para um conjunto minoritário de poetas do século XX (e fim do XIX), particularmente os pertencentes à escola simbolista, cujo representante maior foi Mallarmé, e aqueles que posteriormente foram influenciados de maneira significativa por aquela vertente poética.
Berardinelli cita Eliot na descrição de três tipos de voz poética, dos quais apenas um, o estritamente lírico, ou seja, o poeta falando a si mesmo ou a ninguém, é característico do universo poético contemplado por Friedrich. Os outros dois tipos mencionados por Eliot, a saber, o poeta falando diante de um auditório, e o poeta criando uma personagem dramática, são destacados por Berardinelli como pelo menos igualmente representativos da modernidade, inclusive na própria obra de Eliot, a qual, embora não prime pelo uso convencional da linguagem, faz necessariamente referência a “um suporte externo, cultural, realista e comunicativo” (‘correlativo objetivo’). Segundo Berardinelli, a poesia do século XX exibe mesmo uma tendência a contrapor-se à estética simbolista, perceptível em muitos poetas ignorados ou desvalorizados na análise de Friedrich. Já se mencionou Eliot, mas há muitos outros, inclusive representantes de poéticas nas quais o hermetismo nem se encontra presente, como Whitman e Brecht.
Berardinelli refuta a argumentação de Friedrich em pontos importantes. A multiplicidade estilística e a fragmentação, características encontráveis em Eliot e Apollinaire, longe de serem – conforme argumenta Friedrich – expressões de um divórcio da realidade, seriam técnicas empregadas com o intuito de retratar uma certa fragmentação da própria realidade social e cultural do século XX. Segundo Berardinelli, a análise de Friedrich peca, em última instância, por ser injustificadamente a-histórica. Cumpre notar que Friedrich, na realidade, não é tão a-histórico como Berardinelli faz crer, e, no capítulo 2 de seu livro, explica a perda de representação e a perda do eu como uma fuga da realidade desagradável do século 19. As fantasias e absurdos “tornam-se aspectos de uma irrealidade em que Baudelaire e seus seguidores querem penetrar, para evitar uma realidade cada vez mais restritiva.” (citado por de Man, p. 194). De Man considera a explicação de Friedrich “grosseira, irrelevante e pseudo-histórica”.
Berardinelli cita a seguir Heller e Adorno, os quais postulam a inevitabilidade da conexão da poesia com a realidade; desse modo, diz Adorno, o próprio ‘anti-realismo’ acaba sendo uma tomada de posição com relação a uma realidade sentida como inaceitável ou insuportável. A individuação extremada acaba estabelecendo paradoxalmente uma comunicação universal, uma forma eficaz de expressão autêntica e não corrompida pelas formas sociais de dominação e despersonalização. Embora mais elaborada teoricamente, a posição de Adorno não chega a contradizer a explicação de ‘fuga da realidade’ de Friedrich.
Adorno, citado por Berardinelli, postula ainda a existência de uma corrente poética que de certo modo renuncia à individuação em favor de uma “força coletiva”; Lorca e Brecht são citados como expoentes dessa corrente.
Vamos agora tecer alguns comentários sobre o artigo de de Man, o qual, após dialogar com conceitos de Friedrich e Baudelaire, envereda por teorizações pessoais. Note-se preliminarmente que o diálogo de de Man com o texto de Friedrich não deixa de ser válido, mesmo que eles tenham conceitos diferentes do termo ‘moderno’. Esse diálogo centra-se na crítica que de Man faz sobre algumas afirmações específicas de Friedrich sobre poesia recente, que postulam uma tendência à ‘desrealização’, entendida como resistência à redução do poema a significados predeterminados; de Man argumenta sobre uma base concreta, que é o poema Le tombeau de Verlaine, de Mallarmé, o qual é submetido a uma breve exegese.
Inicialmente, de Man faz um resumo de algumas teorias da modernidade, começando pelas ideias de Yeats, que estabelece uma diferenciação entre poesia de representação (ou mimese), e poesia sem vínculo com a representação, a qual encarna segundo Yeats a modernidade. Aquela tem o espelho como símbolo, enquanto que a última é simbolizada pela lâmpada. Citando de Man, “a poesia moderna é descrita por Yeats como a expressão consciente de um conflito no interior da função da linguagem enquanto representação e no interior da concepção da linguagem como ato de uma vontade autônoma.” Friedrich escreveu sobre a poesia moderna de maneira “surpreendentemente análoga” a Yeats. Em última análise, ambos veem a obscuridade da poesia moderna como decorrente da perda da sua função representacional. “Perda de realidade representacional e perda do eu são inseparáveis”, acrescenta de Man.
De Man, ao contrário de Friedrich e também de Berardinelli, recusa-se a endossar a categorização tradicional da poesia simbolista como estritamente abstrata ou avessa à representação. Armado de um conhecimento bastante erudito da obra de Mallarmé e Verlaine, e de recursos hermenêuticos sofisticados como associações de imagens e atribuição de sentidos metafóricos, ele convincentemente decifra algumas estrofes do poema Le tombeau de Verlaine em termos absolutamente coerentes e consistentes com declarações conhecidas de Verlaine sobre si mesmo, e com a visão do próprio Mallarmé sobre a poesia. Basicamente, Verlaine, secundado pelo próprio Mallarmé, opunha-se a visões sentimentais e cristãs sobre a morte, as quais reputa como superficiais e obscurecedoras do real legado literário do poeta.
De Man baseia-se na já mencionada oposição conceitual entre linguagem representacional e linguagem alegórica para em seguida refutar a tese de Stierle de que Mallarmé não pode ser entendido como poeta representacional. O eu poético em Mallarmé, diz de Man, embora em casos extremos seja “muito impessoal, desencarnado e irônico”, raramente ou nunca pode ser considerado inexistente.
A hipótese da evolução histórica em direção a uma rarefação da representação e do eu, tal como postulada por Friedrich e Jauss, tem, na visão de de Man, um apelo psicológico primitivo.
A relação entre a posteridade e Baudelaire é, segundo de Man, um exemplo de como as teorias têm a tendência de ignorar aspectos da realidade que as contradizem. Em particular, de Man aponta a falta de atenção dada por Mallarmé ao Baudelaire tardio de Petits poèmes en prose, o qual exibe forte característica alegórica e dificuldade de compreensão.
Generalizando a sua argumentação, de Man postula que toda poesia lírica é ambivalente, sendo simultaneamente representacional e não-representacional. A alegorização do poema é algo que não pode ser evitado, pois está na própria raiz do discurso poético, quer o poeta tenha ou não consciência disso. As faces alegórica e representacional são, no entanto, como que inimigas entre si: o elemento representacional é necessário para possibilitar um primeiro acesso ao poema, o qual, no entanto, em seguida ‘convida’ a uma interpretação alegórica que nega a interpretação representacional anterior. A interpretação alegórica adquire imediatamente um status representacional que é base para uma nova interpretação alegórica, num ciclo infinito em que cada estágio anula o anterior.
Prosseguindo, de Man nega a existência de um princípio que leva “da história à modernidade”. Sua argumentação nesse ponto é bastante obscura, seja devido ao texto em si ou à tradução usada. O que pode significar a afirmação de que “a alegoria pode apenas repetir cegamente o seu modelo prévio, sem uma compreensão definitiva”?
Sua conclusão é que “quanto menos compreendemos um poeta, (...) maiores são as possibilidades de que ele seja verdadeiramente moderno; isto é, diferente daquilo que – erradamente – pensamos que somos [itálico nosso].” Como interpretar essa conclusão, seja em si mesma ou em relação à postulação inicial de modernidade como partilha de um “sentido do presente temporal”? (Nota: o termo que pusemos em itálico [somos] parece ser um erro de tradução; a palavra correta parece ser “são”.)
Teceremos alguns comentários finais sobre os textos analisados. O livro de Friedrich (do qual a presente análise considera apenas uma parte), por mais contestado que seja, permanece como um eixo importante em torno do qual, ao menos em parte, os outros dois textos giram. Seu conceito básico é a ausência da função de representação na poesia moderna, a qual é responsável pela sua obscuridade e estranheza. Berardinelli adota um enfoque muito mais amplo, admitindo no entanto a validade da análise de Friedrich para um grupo restrito de poetas, encabeçados por Mallarmé. Não há unidade na análise de Berardinelli; tendo por objetivo um apanhado abrangente da poesia do século XX, ele adota uma postura enciclopédica, baseada principalmente em citações de outros críticos, cobrindo principalmente poetas aos quais a aplicação dos conceitos de Friedrich tem validade parcial, necessitando ser socorridos por elementos históricos e sociais, e poetas aos quais a análise de Friedrich simplesmente não se aplica (p. ex., Whitman). De Man, por sua vez, apresenta um trabalho mais ambicioso, em que, na esteira de Baudelaire, postula a modernidade como um conceito teórico atemporal. Ao contrário de Berardinelli, não lhe interessa nem questionar a ausência de outros tipos de poesia no estudo de Friedrich, nem introduzir elementos históricos ou político-ideológicos para enriquecer essa análise. Seu enfoque é muito mais relacionado a uma alegada essência poética, em termos da dualidade representação/alegoria. De Man não é bem sucedido, ou ao menos não é suficientemente claro, no que concerne à explicitação de uma ligação entre sua definição inicial de modernidade e suas conclusões apoiadas na ambivalência poética e seu efeito na recepção.
REFERÊNCIAS
BAUDELAIRE, Charles. O pintor da vida moderna. In: Poesia e prosa. Organização: Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.
BERARDINELLI, Alfonso. As muitas vozes da poesia moderna. In: Da poesia à prosa. Organização de Maria Betânia Amoroso. Tradução de Maurício Santana Dias. Rio de Janeiro: Cosac & Naify, 2007.
DE MAN, Paul. O ponto de vista da cegueira. Ensaios sobre a retórica da crítica contemporânea. Tradução de Miguel Tamen. Lisboa: Angelus Novus & Cotovia, 1999. Título original: Blindness and insight. Essays in the rhetoric of contemporary criticism. 2nd ed., revised, 1971.
FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da Lírica Moderna (da metade do século XIX a meados do século XX). Capítulo I: Perspectiva e retrospecto. Tradução: Marise M. Curioni. Tradução dos poemas: Dora F. da Silva. São Paulo: Duas Cidades, 1991. Tradução a partir da 2ª ed. em alemão, 1966. [1ª ed. do texto original, 1956]