Tuesday, January 07, 2020

 

"Os Óculos de Pedro Antão", de Machado de Assis: engano ou negligência?


por Marcelo Gilli

Ontem assisti a uma dramatização para televisão do conto 'Os Óculos de Pedro Antão', de Machado de Assis. É um conto de mistério heterodoxo. Os contos de mistério tradicionais iniciam-se pela proposição de um evento misterioso e desenrolam-se até sua elucidação. No conto de Machado (que não li, exceto algumas passagens com o intuito de recordar alguns pontos da trama após ter assistido à versão televisiva) a estrutura aparente é a mesma, só que o tal mistério é produzido artificialmente pelo personagem titular, o qual explica-se numa carta lida após sua morte.

Resumindo: dois jovens visitam a casa que um deles recebeu por herança de seu tio. Lá encontram alguns objetos, entre eles os tais óculos que dão nome ao conto, e um dos jovens elabora uma narrativa que serve de explicação à presença daqueles objetos. Ao fim da narrativa, acham uma carta do morto em que este declara ter adquirido e posicionado os tais objetos com o propósito de estimular a elaboração de uma ficção sobre sua vida e sua morte, e ao final desiludi-los da mesma, incutindo-lhes assim a descrença na 'filosofia da história'.

O narrador, no início do conto, diz:
Quanto a Pedro Antão é positivo que os seus óculos deviam ter por causa o enfraquecimento da vista; mas ainda assim não lhe posso afirmar nada, porque Pedro Antão, que eu não conheci, foi o homem mais singular das tais crônicas, viveu recluso durante a vida inteira e mal consta alguma coisa dos seus primeiros anos.
O narrador é "positivo", mas "não [nos pode] afirmar nada". Curiosa contradição.

Prosseguindo, temos:
Examinamos os óculos que nada particular indicavam; tinham asas grossas e vidros azuis sem grau. Conheci que era uma quarta espécie de óculos; usava-os Pedro Antão para abrandar os raios da luz quando trabalhasse ou lesse de noite. Um dos vidros estava rachado.
É igualmente curioso que o narrador estivesse "positivo" sobre o enfraquecimento da vista como causa do uso dos óculos, e que, no entanto, estes não tivessem grau, servindo somente como proteção dos raios da luz.

O que diz o dono dos óculos? De sua carta:
uns óculos verdes, que eu nunca usei,
É estranheza sobre estranheza. Agora ficamos sabendo (ou não?) que o narrador não fazia uso dos tais óculos nem para corrigir "enfraquecimento da vista", nem para "proteção dos raios da luz". Realmente, ou Machado era um escritor muito negligente, ou muito brincalhão.

Deduz-se do conteúdo da carta que Pedro Antão suicidou-se. Mas o método de suicídio (auto-arremesso do topo de uma escada) é brutal e nem sempre eficiente. A lógica da narrativa implica que sua escolha deveu-se ao intuito de adequar a morte à aparência de um acidente, requerida pela trama sui generis do suicida. Um tanto implausível.

Esse conto tem ideias interessantes, mas possui algumas imperfeições.

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