Monday, June 17, 2013
Poderes Cósmicos, Fraquezas Íntimas: Instâncias do Mal em 'Macbeth'
por Marcelo Gilli
[O ensaio abaixo foi apresentado em novembro de 2012 como requisito de avaliação em disciplina do prof. Alcebíades Diniz Miguel no Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas. Suas aulas foram valiosas para a elaboração do mesmo]
Macbeth é mais ou menos unanimemente tida como uma obra devotada à representação do Mal, ou à reflexão sobre o Mal. Para grande parte de seus leitores, isso é um ponto tão pacífico que nenhuma explicação é julgada necessária sobre essa opinião. Quando essa opinião é dada, geralmente ela baseia-se em lugares comuns ou truísmos ou aspectos puramente cênicos: a peça tem uma “atmosfera opressiva”, a presença de bruxas, que são seres tradicionalmente vistos como encarnações do Mal, um protagonista que encarna diversos atributos “maus”, como a traição, a ambição desenfreada, a tirania. Ao mesmo tempo, é vista como uma obra moralmente sã, já que a punição do Mal acontece na narrativa de forma considerada exemplar. Desse ponto de vista, a peça parece moralmente trivial, condenando comportamentos universalmente tidos como inadmissíveis. Sua reputação repousaria, então, mais em suas virtudes literárias propriamente ditas, do que em seu significado. Curiosamente, o que é tacitamente considerado o ápice estético da peça, o solilóquio do ato 5, cena 5, seria um comentário apropriado sobre a própria peça quando vista nesses termos, já que a mesma exceleria em “som e fúria”, mas não apresentaria um conjunto de ideias e significados originais ou profundos.
A representação do mal em Macbeth, no entanto, se bem examinada, está longe de ser trivial, e sobre ela far-se-ão algumas considerações.
Todas as considerações históricas apresentadas neste trabalho são baseadas no livro de Lilian Winstanley, citado nas referências.
O Mal é estruturado em duas instâncias em Macbeth: a externa e a interna. A grosso modo, a externa seria personificada pelas bruxas, e a interna por Macbeth. Existem algumas nuances que desafiam essa separação; elas serão apresentadas ao longo da exposição seguinte.
1. A dimensão externa do Mal em Macbeth
A instância externa do Mal possui as seguintes características: simplicidade, poder, êxito. A instância interna do Mal, por sua vez, tem características opostas a estas: complexidade, fraqueza, incerteza, medo, fracasso. Tentaremos explicitar como essas características aparecem na obra.
Primeiramente, analisaremos a face externa do Mal. Aqui é preciso admitir que há um certo grau de tautologia nessa expressão: o Mal, enquanto força externa, é mau justamente porque é externo, ou seja, alienígena, estrangeiro, estranho ao humano, incompatível com o humano, em resumo, inimigo do humano. A característica da simplicidade está de certa forma relacionada a essa externalidade; a representação daquilo que é estranho ao humano deve necessariamente ser simples, uma vez que a introdução de complexidades depende de um grau de compreensão, o qual implica por sua vez alguma forma de identificação com o representado. Veremos mais a frente que essa simplicidade traz em seu bojo alguns elementos de ambiguidade que a relativizam. A última característica mencionada, o êxito, pode-se classificar como facultativa. Shakespeare, e Holinshed antes dele, optaram por fazer nesse caso específico o Mal externo triunfar. Paradoxalmente, esse triunfo implica no fracasso do Mal interno. Esteticamente, isso sinaliza a presença da ironia, que é um atributo frequente das tragédias desde a antiguidade clássica.
Uma particularidade a ser observada, ainda com relação à instância externa do Mal, é que, a rigor, ele é personificado por humanos, ou seja, mulheres. Esses humanos seriam apenas os agentes de forças superiores; na peça essas forças permanecem na obscuridade, sendo apenas denominadas de “seus mestres”. Note-se também que a condição de humanos dessas mulheres não está isenta de ambiguidade; até mesmo o sexo é ambíguo, como quando Macbeth refere-se à barba de uma delas. Nas Crônicas de Holinshed, elas são descritas como divindades nórdicas que controlam o destino dos homens. Nessa condição, elas se distanciam de um caráter estritamente maléfico, pois, como divindades, fazem parte da Ordem do Universo. As mitologias nórdicas não possuem o caráter estritamente maniqueísta das judaico-cristãs, de modo que a própria noção de Mal fica embaçada. Shakespeare, embora copiando exatamente as profecias tais quais elas aparecem em Holinshed, acrescentou às personagens características próprias, utilizando elementos obtidos de julgamentos de bruxas, de livros de demonologia, etc. Isso dá-lhes um caráter grotesco que não tinham, e também insere-as (embora ambiguamente) na esfera do humano, e portanto do maléfico, sem que seus atos tenham sido modificados em relação a Holinshed. Note-se que no entanto que elas nunca são referidas como bruxas, mas como “Irmãs do Destino” (Weird Sisters).
O apelo popular das bruxas era muito grande em 1606, quando a peça foi escrita. James I, o rei da Inglaterra na época, era grandemente interessado nesse assunto, e participou de vários julgamentos de bruxas, além de ter escrito um livro sobre demonologia. É importante dizer que não estava sozinho nisso, nem era possuído por uma superstição anormal para a época; todos os seus conselheiros e ministros acreditavam piamente nos poderes da feitiçaria, e em seus poderes maléficos contra a pessoa do rei e contra o reino em geral. Inclusive, um dos principais inimigos de James I, seu semi-demente primo Francis Stuart, era um fervoroso adepto das artes ocultas. Também é importante notar que a feitiçaria em países protestantes como a Inglaterra era quase invariavelmente atribuída ao catolicismo; em novembro de 1605, portanto um pouco antes da escrita da peça, o rei escapou de um famoso atentado, o Complô da Pólvora (Gunpowder Plot), que planejava explodir a Casa dos Lordes com o rei, seu Conselho Privado e dezenas de pessoas que lá estavam. Esse atentado foi planejado e executado por nobres católicos que queriam restaurar o catolicismo na Inglaterra; era opinião corrente das pessoas que cercavam James I que os conspiradores eram pessoas inspiradas pelo diabo, diretamente ou por meio de seus agentes.
Quanto ao poder exibido pelas Irmãs do Destino, é decididamente supra-humano. Fica subentendido, é claro, na versão de Shakespeare, que esse poder emana de algo superior a elas. No entanto, a luz sob a qual enxergamos esse poder muda de Holinshed a Shakespeare. Em Holinshed seus propósitos são insondáveis, mas respeitáveis, já que divinos. Em Shakespeare, parecem derivar de uma perversão. Ambas as visões, no entanto, não são estanques; é razoável postular que se contaminam, sendo apenas a força de uma ou outra que muda.
De certa forma, o mistério e a ambiguidade dessas figuras é parcialmente proveniente do fato de que são personagens funcionais, e portanto sem autonomia psicológica. Seu propósito parece ser o de lançar Macbeth e demais personagens em dilemas e decisões que vão pôr à prova seu caráter e fazê-los agir de acordo com ele. O mecanismo específico das profecias -- a forma como são feitas e seu conteúdo -- é expressamente concebido, ao que tudo indica, para provocar os mencionados dilemas. Existe toda uma complexidade nesses mecanismos, da qual tentou-se dar uma ideia no Apêndice a este trabalho, visto que, embora seu estudo não constitua seu objeto principal, pode ajudar a entender alguns pontos abordados por ele.
A presença desses personagens e elementos ligados à feitiçaria e ao oculto parecem também adicionar uma dimensão demoníaca aos demais acontecimentos da peça; parecem sinalizar que nenhuma interpretação puramente racional, seja de natureza política ou psicológica, será capaz de dar conta desses acontecimentos de maneira totalmente satisfatória. Por fim, é provável que atendessem a anseios estéticos do público da época (e, em certa medida, de qualquer época), que sentia um prazer perverso em presença das manifestações do Mal absoluto, e de representações grotescas desse Mal. Existe uma reflexão de William Peter Blatty, emitida a respeito do sucesso de seu livro “O Exorcista”, que tenta fornecer uma explicação para essa atração: diz ele que as manifestações demoníacas são fascinantes porque, fornecendo uma evidência da existência do Diabo, fornecem indiretamente uma evidência da existência de Deus.
2. A dimensão interna do Mal em Macbeth
A dimensão interna do Mal em Macbeth é aquela que diz respeito ao personagem principal, e, em menor medida, a alguns personagens secundários, particularmente Lady Macbeth. Esse é o cerne da peça, o centro humano da mesma, e onde a real complexidade jaz. O Mal, aqui, é um somatório de elementos negativos.
A primeira característica que analisaremos é a fraqueza, à qual talvez todas as outras possam ser reduzidas, se olharmos profundamente. A ambição de Macbeth pode ser lida como uma fraqueza; a expressão “escravo da ambição” tornou-se um clichê discursivo. Essa ambição, no entanto, parece situar-se dentro de limites normais do indivíduo. O que espanta, e constitui-se numa fraqueza um tanto vergonhosa, é justamente o fato de Macbeth sucumbir à influência de sua esposa. O que a peça mostra é o sexo “por natureza” fraco governando aquele “por natureza” forte. Essa atribuição de um caráter específico a cada sexo fica claro quando Lady Macbeth pede: “tirai-me o sexo” (“unsex me”). Alguns relatos contemporâneos fornecem paralelos espantosos de governantes que se deixaram governar, ao menos em parte, por suas esposas; os mais notáveis são Augusto Pinochet e Ronald Reagan. Essa inversão dos papéis tradicionais do sexos está, no texto, carregada de conotações malignas; parece sinalizar um mundo de cabeça para baixo. Essa malignidade adquire um ápice quando se constata que aquela que foi o motor de todo o caos sucumbe à loucura e finalmente ao suicídio. Aliás, existe um interessante paralelo entre o final de Lady Macbeth e o final das feiticeiras. Tanto uma quanto as outras abandonam, de um jeito ou de outro, a cena antes do fim do drama. Talvez o mais odioso seja que a ambição de Lady Macbeth é uma ambição absolutamente vazia e frívola, desprovida de um objeto à altura da mesma. Em Holinshed seu desejo é portar o título de rainha; uma posição apenas, sem nenhum poder associado a ela. Em Shakespeare, isso não está explícito, mas podemos inferi-lo.
Outro aspecto desse Mal interno é a incerteza, sobre coisas e pessoas. Macbeth desconfia de tudo e de todos. É importante salientar que a mera revelação das profecias já lança a semente da incerteza no coração de Macbeth. (Há uma análise mais detalhada sobre esse mecanismo no Apêndice.) Seus atos criminosos fazem com que essa semente frutifique, por assim dizer. É isso, talvez ainda mais do que o remorso, que tira seu “sono inocente”. Com essa incerteza vem o medo. E esse medo substitui a ambição como motor da violência promovida por Macbeth.
Shakespeare insere na trama vários elementos que não estão em Holinshed, os quais contêm notáveis analogias com eventos históricos contemporâneos. O assassinato de Duncan, por exemplo, reproduz, em vários aspectos, o assassinato de Henry Stuart, lorde Darnley, pai de James I, por James Hepburn, conde de Bothwell, em 1567. Bothwell em seguida casou-se com a mãe de James I, Mary Stuart, o que estabelece um paralelo com outra peça de Shakespeare, Hamlet. Houve uma revolta, e tanto Bothwell quanto Mary acabaram sendo executados alguns meses depois do assassinato. Diz-se que Mary sofreu de melancolia e pensamentos suicidas após o assassinato, o que é reproduzido em Lady Macbeth.
Vários outros eventos contemporâneos da Inglaterra e da França encontram notáveis paralelos na trama da história ou são referidos em falas de personagens. Além dos já citados ao longo deste trabalho, vale lembrar o assassinato do Almirante Coligny, líder dos Huguenotes, na noite de São Bartolomeu. A semelhança mais notável não está talvez no assassinato em si, mas na reação de Carlos IX, o rei católico da França, subsequentemente ao assassinato. Dizem que ele nunca mais conseguiu dormir após os eventos daquela noite, e que provavelmente isso foi o responsável pela deterioração de sua saúde e consequentemente sua morte.
Também na história contemporânea encontramos inúmeros exemplos de tiranos que só mantiveram-se no poder à custa de infindáveis assassinatos e do terror imposto à população. O mais notório foi provavelmente Stalin. Em particular, é notável o paralelo entre os pares Stalin-Bukharin e Macbeth-Banquo, embora deva-se observar que o paralelo é mais forte na versão original de Holinshed, na qual Banquo foi cúmplice de Macbeth na morte de Duncan. Tanto na ficção quanto na realidade, o tirano acaba por eliminar seu antigo amigo e aliado.
Por fim, analisaremos o fracasso que é imposto ao Mal interno personificado em Macbeth. É interessante notar que Macbeth, apesar de cada vez mais isolado, e ainda mais solitário após a morte de Lady Macbeth, continua apegado ao trono até o fim. O momento em que recebe a notícia de Lady Macbeth é um momento notável da peça, em que pronuncia seu famoso solilóquio. Esse solilóquio acrescenta uma perspectiva diferente aos acontecimentos. Macbeth chega à conclusão de que a vida é breve. Também conclui que carece de significado. Aqui uma dúvida interpretativa surge: ela carece de significado porque é breve? A implicação não é feita explicitamente, mas é difícil não estabelecer uma ligação entre as duas coisas.
O solilóquio de Macbeth remete-nos às bruxas. Esses “agentes do destino” trazem em sua essência o conceito de predeterminação, que está intimamente relacionado ao da doutrina da Predestinação. Uma profecia é algo que já está predeterminado, não importa o que seja feito para tentar evitá-lo. Ou melhor, a profecia já leva em conta o que será feito para evitá-la. Dessa forma, toda a luta humana é inútil, é um “pobre cômico que se empavona e agita”.
As bruxas e suas profecias, no fim, são uma metáfora de algo mais amplo. A grande profecia que a todos é feita ao nascer é: você morrerá. Todas as ações humanas são, desse ponto de vista, um mero “empavonear-se e agitar-se”, pois não alteram o destino humano. Desse ponto de vista, essas ações “significam nada”. Portanto, desse ponto de vista, não existe distinção entre as ações de um Macbeth e de qualquer outra pessoa. A moralidade torna-se, por este referencial, irrelevante. O fracasso de Macbeth é, desse ponto de vista, o mesmo fracasso de todos os homens, pois todos têm o mesmo fim. O Mal, então, seria a condição humana.
Essa é a visão de Macbeth, naturalmente. A peça é sobre um homem sem escrúpulos, mas sobretudo, e o que é pior segundo Shakespeare, um homem sem fé. Shakespeare parece estar repetindo a doutrina de Lutero: a salvação não vem das obras, ela vem da fé. O Mal último não são os acontecimentos violentos que abundam na peça; essa é apenas a sua face aparente. A sua essência e origem está no ateísmo.
Mas é aqui que reside a ironia, e a complexidade, da peça, pois, em um de seus aspectos pelo menos, ela é uma peça sobre a fé, tal como a experimenta (ou não) Macbeth em relação às bruxas. Um problema centrais é: deve Macbeth acreditar nas bruxas? Um outro problema é: qual é o comportamento que essa fé implicaria? Esses problemas, e sua estreita relação com o problema da Predestinação ou Predeterminação, estão analisados com mais detalhe no Apêndice para o caso específico das profecias da peça.
É interessante salientar que o problema da Predestinação, tal como proposto pelos Calvinistas, era um dos seus pontos principais de discordância com a doutrina Católica. É curioso que esse problema (e o do já mencionado binômio Fé versus Obras) seja tão central numa peça que procura mimetizar episódios contemporâneos estreitamente relacionados com os conflitos entre católicos e protestantes na Inglaterra e na França.
REFERÊNCIAS
Holinshed, Raphael. Chronicles of England, Scotland and Ireland. Volume V: Scotland. Trechos referentes às histórias de Macbeth e de Duff, usadas na peça de Shakespeare, disponíveis em: http://www.shakespeare-navigators.com/macbeth/Holinshed/index.html
Shakespeare, William. Macbeth; Fully Annotated, with an Introduction, by Burton Raffel; with an Essay by Harold Bloom. (The Annotated Shakespeare). New Haven and London: Yale University Press, 2005.
Shakespeare, William. Macbeth. Trad.: Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Ediouro, 1998.
Winstanley, Lilian. Macbeth, King Lear and Contemporary History: Being a Study of the Relations of the Play of Macbeth to the Personal History of James I, the Darnley Murder and the St Bartholomew Massacre and Also of King Lear as Symbolic Mythology. New York: Octagon Books, 1970.
[O Apêndice a este trabalho não será publicado neste momento. Ele não é essencial à compreensão do mesmo]
[O ensaio abaixo foi apresentado em novembro de 2012 como requisito de avaliação em disciplina do prof. Alcebíades Diniz Miguel no Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas. Suas aulas foram valiosas para a elaboração do mesmo]
Macbeth é mais ou menos unanimemente tida como uma obra devotada à representação do Mal, ou à reflexão sobre o Mal. Para grande parte de seus leitores, isso é um ponto tão pacífico que nenhuma explicação é julgada necessária sobre essa opinião. Quando essa opinião é dada, geralmente ela baseia-se em lugares comuns ou truísmos ou aspectos puramente cênicos: a peça tem uma “atmosfera opressiva”, a presença de bruxas, que são seres tradicionalmente vistos como encarnações do Mal, um protagonista que encarna diversos atributos “maus”, como a traição, a ambição desenfreada, a tirania. Ao mesmo tempo, é vista como uma obra moralmente sã, já que a punição do Mal acontece na narrativa de forma considerada exemplar. Desse ponto de vista, a peça parece moralmente trivial, condenando comportamentos universalmente tidos como inadmissíveis. Sua reputação repousaria, então, mais em suas virtudes literárias propriamente ditas, do que em seu significado. Curiosamente, o que é tacitamente considerado o ápice estético da peça, o solilóquio do ato 5, cena 5, seria um comentário apropriado sobre a própria peça quando vista nesses termos, já que a mesma exceleria em “som e fúria”, mas não apresentaria um conjunto de ideias e significados originais ou profundos.
A representação do mal em Macbeth, no entanto, se bem examinada, está longe de ser trivial, e sobre ela far-se-ão algumas considerações.
Todas as considerações históricas apresentadas neste trabalho são baseadas no livro de Lilian Winstanley, citado nas referências.
O Mal é estruturado em duas instâncias em Macbeth: a externa e a interna. A grosso modo, a externa seria personificada pelas bruxas, e a interna por Macbeth. Existem algumas nuances que desafiam essa separação; elas serão apresentadas ao longo da exposição seguinte.
1. A dimensão externa do Mal em Macbeth
A instância externa do Mal possui as seguintes características: simplicidade, poder, êxito. A instância interna do Mal, por sua vez, tem características opostas a estas: complexidade, fraqueza, incerteza, medo, fracasso. Tentaremos explicitar como essas características aparecem na obra.
Primeiramente, analisaremos a face externa do Mal. Aqui é preciso admitir que há um certo grau de tautologia nessa expressão: o Mal, enquanto força externa, é mau justamente porque é externo, ou seja, alienígena, estrangeiro, estranho ao humano, incompatível com o humano, em resumo, inimigo do humano. A característica da simplicidade está de certa forma relacionada a essa externalidade; a representação daquilo que é estranho ao humano deve necessariamente ser simples, uma vez que a introdução de complexidades depende de um grau de compreensão, o qual implica por sua vez alguma forma de identificação com o representado. Veremos mais a frente que essa simplicidade traz em seu bojo alguns elementos de ambiguidade que a relativizam. A última característica mencionada, o êxito, pode-se classificar como facultativa. Shakespeare, e Holinshed antes dele, optaram por fazer nesse caso específico o Mal externo triunfar. Paradoxalmente, esse triunfo implica no fracasso do Mal interno. Esteticamente, isso sinaliza a presença da ironia, que é um atributo frequente das tragédias desde a antiguidade clássica.
Uma particularidade a ser observada, ainda com relação à instância externa do Mal, é que, a rigor, ele é personificado por humanos, ou seja, mulheres. Esses humanos seriam apenas os agentes de forças superiores; na peça essas forças permanecem na obscuridade, sendo apenas denominadas de “seus mestres”. Note-se também que a condição de humanos dessas mulheres não está isenta de ambiguidade; até mesmo o sexo é ambíguo, como quando Macbeth refere-se à barba de uma delas. Nas Crônicas de Holinshed, elas são descritas como divindades nórdicas que controlam o destino dos homens. Nessa condição, elas se distanciam de um caráter estritamente maléfico, pois, como divindades, fazem parte da Ordem do Universo. As mitologias nórdicas não possuem o caráter estritamente maniqueísta das judaico-cristãs, de modo que a própria noção de Mal fica embaçada. Shakespeare, embora copiando exatamente as profecias tais quais elas aparecem em Holinshed, acrescentou às personagens características próprias, utilizando elementos obtidos de julgamentos de bruxas, de livros de demonologia, etc. Isso dá-lhes um caráter grotesco que não tinham, e também insere-as (embora ambiguamente) na esfera do humano, e portanto do maléfico, sem que seus atos tenham sido modificados em relação a Holinshed. Note-se que no entanto que elas nunca são referidas como bruxas, mas como “Irmãs do Destino” (Weird Sisters).
O apelo popular das bruxas era muito grande em 1606, quando a peça foi escrita. James I, o rei da Inglaterra na época, era grandemente interessado nesse assunto, e participou de vários julgamentos de bruxas, além de ter escrito um livro sobre demonologia. É importante dizer que não estava sozinho nisso, nem era possuído por uma superstição anormal para a época; todos os seus conselheiros e ministros acreditavam piamente nos poderes da feitiçaria, e em seus poderes maléficos contra a pessoa do rei e contra o reino em geral. Inclusive, um dos principais inimigos de James I, seu semi-demente primo Francis Stuart, era um fervoroso adepto das artes ocultas. Também é importante notar que a feitiçaria em países protestantes como a Inglaterra era quase invariavelmente atribuída ao catolicismo; em novembro de 1605, portanto um pouco antes da escrita da peça, o rei escapou de um famoso atentado, o Complô da Pólvora (Gunpowder Plot), que planejava explodir a Casa dos Lordes com o rei, seu Conselho Privado e dezenas de pessoas que lá estavam. Esse atentado foi planejado e executado por nobres católicos que queriam restaurar o catolicismo na Inglaterra; era opinião corrente das pessoas que cercavam James I que os conspiradores eram pessoas inspiradas pelo diabo, diretamente ou por meio de seus agentes.
Quanto ao poder exibido pelas Irmãs do Destino, é decididamente supra-humano. Fica subentendido, é claro, na versão de Shakespeare, que esse poder emana de algo superior a elas. No entanto, a luz sob a qual enxergamos esse poder muda de Holinshed a Shakespeare. Em Holinshed seus propósitos são insondáveis, mas respeitáveis, já que divinos. Em Shakespeare, parecem derivar de uma perversão. Ambas as visões, no entanto, não são estanques; é razoável postular que se contaminam, sendo apenas a força de uma ou outra que muda.
De certa forma, o mistério e a ambiguidade dessas figuras é parcialmente proveniente do fato de que são personagens funcionais, e portanto sem autonomia psicológica. Seu propósito parece ser o de lançar Macbeth e demais personagens em dilemas e decisões que vão pôr à prova seu caráter e fazê-los agir de acordo com ele. O mecanismo específico das profecias -- a forma como são feitas e seu conteúdo -- é expressamente concebido, ao que tudo indica, para provocar os mencionados dilemas. Existe toda uma complexidade nesses mecanismos, da qual tentou-se dar uma ideia no Apêndice a este trabalho, visto que, embora seu estudo não constitua seu objeto principal, pode ajudar a entender alguns pontos abordados por ele.
A presença desses personagens e elementos ligados à feitiçaria e ao oculto parecem também adicionar uma dimensão demoníaca aos demais acontecimentos da peça; parecem sinalizar que nenhuma interpretação puramente racional, seja de natureza política ou psicológica, será capaz de dar conta desses acontecimentos de maneira totalmente satisfatória. Por fim, é provável que atendessem a anseios estéticos do público da época (e, em certa medida, de qualquer época), que sentia um prazer perverso em presença das manifestações do Mal absoluto, e de representações grotescas desse Mal. Existe uma reflexão de William Peter Blatty, emitida a respeito do sucesso de seu livro “O Exorcista”, que tenta fornecer uma explicação para essa atração: diz ele que as manifestações demoníacas são fascinantes porque, fornecendo uma evidência da existência do Diabo, fornecem indiretamente uma evidência da existência de Deus.
2. A dimensão interna do Mal em Macbeth
A dimensão interna do Mal em Macbeth é aquela que diz respeito ao personagem principal, e, em menor medida, a alguns personagens secundários, particularmente Lady Macbeth. Esse é o cerne da peça, o centro humano da mesma, e onde a real complexidade jaz. O Mal, aqui, é um somatório de elementos negativos.
A primeira característica que analisaremos é a fraqueza, à qual talvez todas as outras possam ser reduzidas, se olharmos profundamente. A ambição de Macbeth pode ser lida como uma fraqueza; a expressão “escravo da ambição” tornou-se um clichê discursivo. Essa ambição, no entanto, parece situar-se dentro de limites normais do indivíduo. O que espanta, e constitui-se numa fraqueza um tanto vergonhosa, é justamente o fato de Macbeth sucumbir à influência de sua esposa. O que a peça mostra é o sexo “por natureza” fraco governando aquele “por natureza” forte. Essa atribuição de um caráter específico a cada sexo fica claro quando Lady Macbeth pede: “tirai-me o sexo” (“unsex me”). Alguns relatos contemporâneos fornecem paralelos espantosos de governantes que se deixaram governar, ao menos em parte, por suas esposas; os mais notáveis são Augusto Pinochet e Ronald Reagan. Essa inversão dos papéis tradicionais do sexos está, no texto, carregada de conotações malignas; parece sinalizar um mundo de cabeça para baixo. Essa malignidade adquire um ápice quando se constata que aquela que foi o motor de todo o caos sucumbe à loucura e finalmente ao suicídio. Aliás, existe um interessante paralelo entre o final de Lady Macbeth e o final das feiticeiras. Tanto uma quanto as outras abandonam, de um jeito ou de outro, a cena antes do fim do drama. Talvez o mais odioso seja que a ambição de Lady Macbeth é uma ambição absolutamente vazia e frívola, desprovida de um objeto à altura da mesma. Em Holinshed seu desejo é portar o título de rainha; uma posição apenas, sem nenhum poder associado a ela. Em Shakespeare, isso não está explícito, mas podemos inferi-lo.
Outro aspecto desse Mal interno é a incerteza, sobre coisas e pessoas. Macbeth desconfia de tudo e de todos. É importante salientar que a mera revelação das profecias já lança a semente da incerteza no coração de Macbeth. (Há uma análise mais detalhada sobre esse mecanismo no Apêndice.) Seus atos criminosos fazem com que essa semente frutifique, por assim dizer. É isso, talvez ainda mais do que o remorso, que tira seu “sono inocente”. Com essa incerteza vem o medo. E esse medo substitui a ambição como motor da violência promovida por Macbeth.
Shakespeare insere na trama vários elementos que não estão em Holinshed, os quais contêm notáveis analogias com eventos históricos contemporâneos. O assassinato de Duncan, por exemplo, reproduz, em vários aspectos, o assassinato de Henry Stuart, lorde Darnley, pai de James I, por James Hepburn, conde de Bothwell, em 1567. Bothwell em seguida casou-se com a mãe de James I, Mary Stuart, o que estabelece um paralelo com outra peça de Shakespeare, Hamlet. Houve uma revolta, e tanto Bothwell quanto Mary acabaram sendo executados alguns meses depois do assassinato. Diz-se que Mary sofreu de melancolia e pensamentos suicidas após o assassinato, o que é reproduzido em Lady Macbeth.
Vários outros eventos contemporâneos da Inglaterra e da França encontram notáveis paralelos na trama da história ou são referidos em falas de personagens. Além dos já citados ao longo deste trabalho, vale lembrar o assassinato do Almirante Coligny, líder dos Huguenotes, na noite de São Bartolomeu. A semelhança mais notável não está talvez no assassinato em si, mas na reação de Carlos IX, o rei católico da França, subsequentemente ao assassinato. Dizem que ele nunca mais conseguiu dormir após os eventos daquela noite, e que provavelmente isso foi o responsável pela deterioração de sua saúde e consequentemente sua morte.
Também na história contemporânea encontramos inúmeros exemplos de tiranos que só mantiveram-se no poder à custa de infindáveis assassinatos e do terror imposto à população. O mais notório foi provavelmente Stalin. Em particular, é notável o paralelo entre os pares Stalin-Bukharin e Macbeth-Banquo, embora deva-se observar que o paralelo é mais forte na versão original de Holinshed, na qual Banquo foi cúmplice de Macbeth na morte de Duncan. Tanto na ficção quanto na realidade, o tirano acaba por eliminar seu antigo amigo e aliado.
Por fim, analisaremos o fracasso que é imposto ao Mal interno personificado em Macbeth. É interessante notar que Macbeth, apesar de cada vez mais isolado, e ainda mais solitário após a morte de Lady Macbeth, continua apegado ao trono até o fim. O momento em que recebe a notícia de Lady Macbeth é um momento notável da peça, em que pronuncia seu famoso solilóquio. Esse solilóquio acrescenta uma perspectiva diferente aos acontecimentos. Macbeth chega à conclusão de que a vida é breve. Também conclui que carece de significado. Aqui uma dúvida interpretativa surge: ela carece de significado porque é breve? A implicação não é feita explicitamente, mas é difícil não estabelecer uma ligação entre as duas coisas.
O solilóquio de Macbeth remete-nos às bruxas. Esses “agentes do destino” trazem em sua essência o conceito de predeterminação, que está intimamente relacionado ao da doutrina da Predestinação. Uma profecia é algo que já está predeterminado, não importa o que seja feito para tentar evitá-lo. Ou melhor, a profecia já leva em conta o que será feito para evitá-la. Dessa forma, toda a luta humana é inútil, é um “pobre cômico que se empavona e agita”.
As bruxas e suas profecias, no fim, são uma metáfora de algo mais amplo. A grande profecia que a todos é feita ao nascer é: você morrerá. Todas as ações humanas são, desse ponto de vista, um mero “empavonear-se e agitar-se”, pois não alteram o destino humano. Desse ponto de vista, essas ações “significam nada”. Portanto, desse ponto de vista, não existe distinção entre as ações de um Macbeth e de qualquer outra pessoa. A moralidade torna-se, por este referencial, irrelevante. O fracasso de Macbeth é, desse ponto de vista, o mesmo fracasso de todos os homens, pois todos têm o mesmo fim. O Mal, então, seria a condição humana.
Essa é a visão de Macbeth, naturalmente. A peça é sobre um homem sem escrúpulos, mas sobretudo, e o que é pior segundo Shakespeare, um homem sem fé. Shakespeare parece estar repetindo a doutrina de Lutero: a salvação não vem das obras, ela vem da fé. O Mal último não são os acontecimentos violentos que abundam na peça; essa é apenas a sua face aparente. A sua essência e origem está no ateísmo.
Mas é aqui que reside a ironia, e a complexidade, da peça, pois, em um de seus aspectos pelo menos, ela é uma peça sobre a fé, tal como a experimenta (ou não) Macbeth em relação às bruxas. Um problema centrais é: deve Macbeth acreditar nas bruxas? Um outro problema é: qual é o comportamento que essa fé implicaria? Esses problemas, e sua estreita relação com o problema da Predestinação ou Predeterminação, estão analisados com mais detalhe no Apêndice para o caso específico das profecias da peça.
É interessante salientar que o problema da Predestinação, tal como proposto pelos Calvinistas, era um dos seus pontos principais de discordância com a doutrina Católica. É curioso que esse problema (e o do já mencionado binômio Fé versus Obras) seja tão central numa peça que procura mimetizar episódios contemporâneos estreitamente relacionados com os conflitos entre católicos e protestantes na Inglaterra e na França.
REFERÊNCIAS
Holinshed, Raphael. Chronicles of England, Scotland and Ireland. Volume V: Scotland. Trechos referentes às histórias de Macbeth e de Duff, usadas na peça de Shakespeare, disponíveis em: http://www.shakespeare-navigators.com/macbeth/Holinshed/index.html
Shakespeare, William. Macbeth; Fully Annotated, with an Introduction, by Burton Raffel; with an Essay by Harold Bloom. (The Annotated Shakespeare). New Haven and London: Yale University Press, 2005.
Shakespeare, William. Macbeth. Trad.: Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Ediouro, 1998.
Winstanley, Lilian. Macbeth, King Lear and Contemporary History: Being a Study of the Relations of the Play of Macbeth to the Personal History of James I, the Darnley Murder and the St Bartholomew Massacre and Also of King Lear as Symbolic Mythology. New York: Octagon Books, 1970.
[O Apêndice a este trabalho não será publicado neste momento. Ele não é essencial à compreensão do mesmo]
Sunday, June 16, 2013
All Men Are Liars
There are no facts, only interpretations. This is a fact, not an interpretation.
Saturday, June 15, 2013
One Law of Politics that I Have Never Seen Stated
O grau de virulência, ou extremismo, de um dado partido ou facção é diretamente proporcional ao grau de moderação da oposição que ele terá quando estiver no poder. No caso limite (e.g. bolcheviques) ele não terá oposição alguma.
The degree of virulence, or extremism, of a given party or faction is directly proportional to the degree of moderation of the opposition it will get when it attains power. In the limit case (e.g. bolsheviks) it will have no opposition at all.
The degree of virulence, or extremism, of a given party or faction is directly proportional to the degree of moderation of the opposition it will get when it attains power. In the limit case (e.g. bolsheviks) it will have no opposition at all.