Sunday, September 20, 2009
School is Paradise, volume 1 (in Portuguese!)
Texto 1 (de "não foi fácil" até "diferenças é bom.").
Texto 2 (de "se a questão" até "coerção racial").
Texto 2 (link alternativo)
Texto 3: Depoimento de Jorge Amado. In: RAILLARD, Alice. Conversando com Jorge Amado. Rio de Janeiro: Record, 1990. De "Há hoje uma" até "a nossa vida".
(A seleção dos textos acima é do professor Jefferson Cano, que solicitou a análise comparada dos mesmos a seus estudantes.)
Os três textos remetem a discussões sobre a questão racial no Brasil; cada um deles provê uma resposta própria a essas discussões. Serão aqui tecidos comentários sobre cada uma dessas respostas individualmente e, subsequentemente, tentar-se-á estabelecer relações entre elas.
I. O primeiro texto traz à baila um certo pensamento de fundo racista que vigorou em certos círculos intelectuais ditos eugenistas do começo do século, o qual postulava, com pretensões científicas, diferenças "qualitativas" entre indivíduos racialmente "puros" e outros provenientes do cruzamento entre raças. Gilberto Freyre, em "Casa Grande e Senzala", menciona alguns desses grupos, chamados de arianistas, os quais atribuíam valor superior a raças ditas "arianas"; no caso específico de sua ideologia, não só a mestiçagem seria problemática, como também haveria uma hierarquia entre as raças denominadas puras. Paulo Prado, em "Retrato do Brasil", em seu Pós-escrito, demonstra preocupação com a questão da mestiçagem; professa a opinião de que não haveria diferenças sensíveis entre as raças ditas puras, mas que nada se poderia dizer até aquele momento quanto à nova raça que estaria sendo produzida pelo processo de mestiçagem em curso no Brasil. Tanto Prado quanto Freyre explicitam a predominância da situação social ou econômica sobre a mera característica racial no que toca à explicação de alguns problemas sociais brasileiros, ou de algumas características psicológicas que eles atribuem ao brasileiro; um dos aspectos socioeconômicos que, segundo esses autores, teve um papel pernicioso sobre o Brasil e sobre o brasileiro foi o regime de escravidão. Nenhum desses autores, por outro lado, desqualifica a discussão em si; o que parecem estar dizendo é: pode haver diferença entre as raças, e isso é um assunto digno de estudo; no entanto, para os problemas levantados, a explicação histórica e sociológica é, segundo eles, suficiente e mais plausível. Freyre aponta vantagens para o convívio social provenientes da mestiçagem; por exemplo, é sua opinião que as relações entre senhor e escrava "adoçaram" as relações entre as classes sociais no Brasil escravista.
O texto de Vianna articula-se em torno das questões expostas no parágrafo anterior, propondo uma valoração da condição de mestiço. Ele remete a uma aparente necessidade de criar uma identidade ligada essa condição, a qual tenha um caráter positivo. Expressa uma oposição explícita aos preconceitos pseudocientíficos que atribuem uma suposta inferioridade biológica ao mestiço. É importante notar que não se trata de uma identidade apoiada especificamente numa raça, já que o que a caracteriza é justamente o fato da perda dessa identidade; a noção de raça é substituída pela de "mistura". O último parágrafo é bastante ambíguo: quando ele fala do "pensamento brasileiro", não fica claro se ele se refere às análises de pensadores como Freyre, que são vistas por alguns como uma espécie de elogio da miscigenação; ou se ele se refere a uma espécie de pensamento coletivo do povo brasileiro, o qual, através de sua postura prática perante a miscigenação, estaria "dizendo" que "misturar diferenças é bom". Parece mais provável a segunda opção, a qual, no entanto, não deixa de ter elementos intrigantes: atribui-se uma qualidade consciente, de pensamento, à qual se acrescenta mesmo o adjetivo "corajoso", a um processo histórico coletivo onde o instinto, as necessidades, conveniências e circunstâncias, às vezes o mero acaso, são fatores plausivelmente determinantes. O sentido do texto não parece estar ligado a uma exposição objetiva de fatos históricos, mas antes parece ser parte daquela mencionada construção de identidade; quando ele diz, ao final, que "misturar diferenças é bom", pouco sabemos sobre o que ele entende por "bom", ou para quem isso seria "bom"; mais uma vez, trata-se de um discurso auto-alimentador, com intuito de imbuir auto-estima a um segmento majoritário da população, o qual tende a construir um dos aspectos de sua identidade em torno da noção de "mestiço". O que não fica claro no texto é a quem exatamente esse discurso estaria fazendo oposição. Explicitamente, trata-se de uma negação de um pensamento preconceituoso passado, o qual supõe-se estar historicamente vencido. Implicitamente, o texto contém a suspeita de que o preconceito ainda encontre ressonância no presente. Estaria o autor simplesmente opondo o Brasil a outros países onde a miscigenação não ocorreu significativamente? Ou será que sua mensagem tem destinatário interno ao país?
II. O texto de Schwarcz tem um caráter de crítica ao pensamento científico brasileiro, o qual, segundo a autora, concentrou-se excessivamente em abordagens de cunho racial, negligenciando importantes fatores histórico-sociológico-psicológicos que passam ao largo de fatores raciais.
É possível entender de onde vêm os argumentos da autora quando lembramos que textos clássicos como "Casa Grande e Senzala" (1933) e "Sobrados e Mucambos" (1936), ambos de Gilberto Freyre, articulam-se predominantemente em torno do conceito de raça. (O livro de Paulo Prado, "Retrato do Brasil", também faz da composição tri-racial brasileira o alicerce a partir de onde ele constrói sua "teoria" do caráter nacional. Esse livro não tem hoje peso significativo, se é que já o teve, no pensamento científico nacional.) Um aspecto da abordagem de Freyre, em "Casa Grande e Senzala", é que o papel social do indivíduo é condicionado quase absolutamente por sua raça. Dessa forma, toda a contribuição do africano à formação da sociedade brasileira ocorre quase à sua revelia: a miscigenação é um fator de influência, mas ela ocorre por iniciativa do senhor branco; as influências ditas "culturais" na língua, na culinária, etc. são fruto quase espontâneo do desempenho das funções exercidas pelos escravos no seu dia-a-dia. Mesmo em "Sobrados e Mucambos", onde vemos o afro-descendente, agora caracterizado como "mulato", com maior grau de liberdade na sociedade, Freyre insiste em mapear seu comportamento social com base em sua carga racial miscigenada.
A visão de Freyre, embora superficialmente tenha cunho inclusivo e não-racista, não difere radicalmente daquela de Martius, em sua proposta de História do Brasil: o País, para eles, é definido a partir da interação entre as três raças. Em contraste com essa visão, temos, por exemplo, o estudo de Robert Slenes ("Malungu, ngoma vem!": África coberta e descoberta no Brasil, 1991-92), onde se estuda a formação de comunidades secretas entre os escravos, com base em elementos linguísticos e religiosos comuns entre eles, e como essas comunidades chegaram a se organizar em rebeliões. O escravo aqui é visto como elemento ativo, construindo sua identidade e agindo com base nela. A raça é um mero detalhe, que de certa forma determinou inicialmente sua marginalização social, mas não determina o comportamento dos indivíduos.
III. O depoimento de Jorge Amado parece ter como cerne a crítica ao assim chamado "movimento negro" no Brasil. Uma multiplicidade de argumentos é listada por Amado, tendo como premissa básica a de que existiria uma "identidade brasileira", a qual seria fruto da mistura das três raças: branca, negra e índigena; a identidade "negra" em solo brasileiro seria uma ficção, não possuindo contrapartida na realidade nacional atual. Amado preocupa-se com possíveis desdobramentos racistas que poderiam advir de tais ideologias. Cita em sua defesa Gilberto Freyre, que teria, em "Casa Grande e Senzala", proposto um modelo de convivência entre as raças marcado por uma tendência à harmonização pela miscigenação. Amado parece temer que, opostos à visão legada por Freyre, movimentos sociais sem fundamentação histórica consistente possam, à custa de ficções ideológicas, ampliar-se e constituir-se em focos de ódio e instabilidade social.
A questão do racismo tomou triste importância no século passado, principalmente em conexão com as catastróficas consequências da ideologia nazista. As respostas da civilização ao racismo têm sido pautadas por duas vertentes; por um lado, a ciência tem-se encarregado de desmontar os mitos de "superioridade racial" e o da validade do próprio conceito de raça; por outro lado, a valorização das chamadas "sociedades abertas", conforme a expressão de Karl Popper, as quais são geralmente identificadas com ideais democráticos de liberdade e estado de direito, tendem a minimizar as condições para que o racismo prolifere em suas formas mais devastadoras. No caso das afirmações do texto de Jorge Amado, existem alguns pontos problemáticos ou pelo menos duvidosos. Amado parece implicar que a formação de identidades com base em raça, como quer que se a entenda, tem necessariamente conotações racistas. O estudo, mesmo que superficial, da história humana mostra que o conceito de raça é muito poderoso, e não há como "fazê-lo desaparecer" apenas com boa-vontade. Vemos, no entanto, que, embora as identidades raciais sejam onipresentes, o racismo, ao menos em suas formas mais explicitamente destrutivas, depende de uma conjunção bastante específica de fatores históricos.
No caso brasileiro, é ingenuidade supor que associações não existam, formal ou informalmente, entre brasileiros de origens étnicas comuns, sejam estas quais forem. É também implausível a noção de que movimentos sociais venham a ganhar força sem a contrapartida de um fenômeno social real que os alimente. As ideologias, importadas ou não, são meros intrumentos para a concretização de um anseio, e tendem a se ajustar dinamicamente aos fatos. Por fim, a posição de Jorge Amado, mesmo que supostamente motivada por um genuíno senso de brasilidade e um desejo legítimo de confraternização nacional, traz um preocupante elemento reacionário na medida em que desqualifica ou anatematiza a organização de grupos como mecanismo de defesa à opressão; de certa forma, essa postura, se generalizada, na medida em que tenta fragilizar esses grupos, constitui, ela sim, uma prática disfarçada de racismo.
Quanto ao argumento de Amado de que não existiria uma base biológica para a formação de uma identidade negra no Brasil, ele baseia-se em falsas premissas. A formação de identidades não depende necessariamente de afinidades biológicas rigidamente estabelecidas, mas baseia-se em construções culturais fundadas sobre signos diferenciadores compartilhados arbitrários (sinais diacríticos); um belo exemplo de como essas identidades são formadas encontra-se no estudo de Manuela Carneiro da Cunha, "Negros, Estrangeiros"; em seu capítulo "Brasileiros em Lagos", ela mostra como os brasileiros libertos emigrados à África no século 19 constituíram uma comunidade à parte, com seus valores e sua herança religiosa e cultural brasileiros, em oposição aos valores africanos; outro interessante estudo de caso de formação de identidade comum motivada pelas circunstâncias, entre pessoas de etnias diferentes, é o supracitado artigo de Robert Slenes, "Malungu, Ngoma vem!"; nele se vê como os escravos vindos de nações africanas distintas forjaram uma identidade comum, em resposta à sua condição comum de escravo. Em suma, as identidades sociais surgem como resposta a um contexto social específico, seja ele de opressão ou discriminação, seja da necessidade de convívio baseado em valores comuns.
Conclusão. Comparando os três textos citados, vemos que o pensamento de Gilberto Freyre faz sentir sua presença em todos, mesmo que em um deles (Schwarcz) seja como objeto de crítica. Seu modo de pensar a realidade brasileira teve consequências profundas, para o bem e para o mal, não só na obra de outros cientistas como no próprio modo como o brasileiro se vê e vê o país. A visão de Freyre fez bem à auto-estima nacional, de certa maneira, com sua abordagem até certo ponto anti-racista e inclusiva. Por outro lado, sua valorização de aspectos não-confrontacionais da relação entre os diversos segmentos sociais levou a uma distorção nos estudos sociológicos e históricos, os quais negligenciam o papel ativo dos indivíduos em situações de conflito; no âmbito mais amplo da sociedade, levou por vezes à alimentação de uma certa ideologia conciliadora e minimizadora desses mesmos conflitos, a qual pode se prestar à perpetuação de situações de opressão.
Texto 2 (de "se a questão" até "coerção racial").
Texto 2 (link alternativo)
Texto 3: Depoimento de Jorge Amado. In: RAILLARD, Alice. Conversando com Jorge Amado. Rio de Janeiro: Record, 1990. De "Há hoje uma" até "a nossa vida".
(A seleção dos textos acima é do professor Jefferson Cano, que solicitou a análise comparada dos mesmos a seus estudantes.)
Os três textos remetem a discussões sobre a questão racial no Brasil; cada um deles provê uma resposta própria a essas discussões. Serão aqui tecidos comentários sobre cada uma dessas respostas individualmente e, subsequentemente, tentar-se-á estabelecer relações entre elas.
I. O primeiro texto traz à baila um certo pensamento de fundo racista que vigorou em certos círculos intelectuais ditos eugenistas do começo do século, o qual postulava, com pretensões científicas, diferenças "qualitativas" entre indivíduos racialmente "puros" e outros provenientes do cruzamento entre raças. Gilberto Freyre, em "Casa Grande e Senzala", menciona alguns desses grupos, chamados de arianistas, os quais atribuíam valor superior a raças ditas "arianas"; no caso específico de sua ideologia, não só a mestiçagem seria problemática, como também haveria uma hierarquia entre as raças denominadas puras. Paulo Prado, em "Retrato do Brasil", em seu Pós-escrito, demonstra preocupação com a questão da mestiçagem; professa a opinião de que não haveria diferenças sensíveis entre as raças ditas puras, mas que nada se poderia dizer até aquele momento quanto à nova raça que estaria sendo produzida pelo processo de mestiçagem em curso no Brasil. Tanto Prado quanto Freyre explicitam a predominância da situação social ou econômica sobre a mera característica racial no que toca à explicação de alguns problemas sociais brasileiros, ou de algumas características psicológicas que eles atribuem ao brasileiro; um dos aspectos socioeconômicos que, segundo esses autores, teve um papel pernicioso sobre o Brasil e sobre o brasileiro foi o regime de escravidão. Nenhum desses autores, por outro lado, desqualifica a discussão em si; o que parecem estar dizendo é: pode haver diferença entre as raças, e isso é um assunto digno de estudo; no entanto, para os problemas levantados, a explicação histórica e sociológica é, segundo eles, suficiente e mais plausível. Freyre aponta vantagens para o convívio social provenientes da mestiçagem; por exemplo, é sua opinião que as relações entre senhor e escrava "adoçaram" as relações entre as classes sociais no Brasil escravista.
O texto de Vianna articula-se em torno das questões expostas no parágrafo anterior, propondo uma valoração da condição de mestiço. Ele remete a uma aparente necessidade de criar uma identidade ligada essa condição, a qual tenha um caráter positivo. Expressa uma oposição explícita aos preconceitos pseudocientíficos que atribuem uma suposta inferioridade biológica ao mestiço. É importante notar que não se trata de uma identidade apoiada especificamente numa raça, já que o que a caracteriza é justamente o fato da perda dessa identidade; a noção de raça é substituída pela de "mistura". O último parágrafo é bastante ambíguo: quando ele fala do "pensamento brasileiro", não fica claro se ele se refere às análises de pensadores como Freyre, que são vistas por alguns como uma espécie de elogio da miscigenação; ou se ele se refere a uma espécie de pensamento coletivo do povo brasileiro, o qual, através de sua postura prática perante a miscigenação, estaria "dizendo" que "misturar diferenças é bom". Parece mais provável a segunda opção, a qual, no entanto, não deixa de ter elementos intrigantes: atribui-se uma qualidade consciente, de pensamento, à qual se acrescenta mesmo o adjetivo "corajoso", a um processo histórico coletivo onde o instinto, as necessidades, conveniências e circunstâncias, às vezes o mero acaso, são fatores plausivelmente determinantes. O sentido do texto não parece estar ligado a uma exposição objetiva de fatos históricos, mas antes parece ser parte daquela mencionada construção de identidade; quando ele diz, ao final, que "misturar diferenças é bom", pouco sabemos sobre o que ele entende por "bom", ou para quem isso seria "bom"; mais uma vez, trata-se de um discurso auto-alimentador, com intuito de imbuir auto-estima a um segmento majoritário da população, o qual tende a construir um dos aspectos de sua identidade em torno da noção de "mestiço". O que não fica claro no texto é a quem exatamente esse discurso estaria fazendo oposição. Explicitamente, trata-se de uma negação de um pensamento preconceituoso passado, o qual supõe-se estar historicamente vencido. Implicitamente, o texto contém a suspeita de que o preconceito ainda encontre ressonância no presente. Estaria o autor simplesmente opondo o Brasil a outros países onde a miscigenação não ocorreu significativamente? Ou será que sua mensagem tem destinatário interno ao país?
II. O texto de Schwarcz tem um caráter de crítica ao pensamento científico brasileiro, o qual, segundo a autora, concentrou-se excessivamente em abordagens de cunho racial, negligenciando importantes fatores histórico-sociológico-psicológicos que passam ao largo de fatores raciais.
É possível entender de onde vêm os argumentos da autora quando lembramos que textos clássicos como "Casa Grande e Senzala" (1933) e "Sobrados e Mucambos" (1936), ambos de Gilberto Freyre, articulam-se predominantemente em torno do conceito de raça. (O livro de Paulo Prado, "Retrato do Brasil", também faz da composição tri-racial brasileira o alicerce a partir de onde ele constrói sua "teoria" do caráter nacional. Esse livro não tem hoje peso significativo, se é que já o teve, no pensamento científico nacional.) Um aspecto da abordagem de Freyre, em "Casa Grande e Senzala", é que o papel social do indivíduo é condicionado quase absolutamente por sua raça. Dessa forma, toda a contribuição do africano à formação da sociedade brasileira ocorre quase à sua revelia: a miscigenação é um fator de influência, mas ela ocorre por iniciativa do senhor branco; as influências ditas "culturais" na língua, na culinária, etc. são fruto quase espontâneo do desempenho das funções exercidas pelos escravos no seu dia-a-dia. Mesmo em "Sobrados e Mucambos", onde vemos o afro-descendente, agora caracterizado como "mulato", com maior grau de liberdade na sociedade, Freyre insiste em mapear seu comportamento social com base em sua carga racial miscigenada.
A visão de Freyre, embora superficialmente tenha cunho inclusivo e não-racista, não difere radicalmente daquela de Martius, em sua proposta de História do Brasil: o País, para eles, é definido a partir da interação entre as três raças. Em contraste com essa visão, temos, por exemplo, o estudo de Robert Slenes ("Malungu, ngoma vem!": África coberta e descoberta no Brasil, 1991-92), onde se estuda a formação de comunidades secretas entre os escravos, com base em elementos linguísticos e religiosos comuns entre eles, e como essas comunidades chegaram a se organizar em rebeliões. O escravo aqui é visto como elemento ativo, construindo sua identidade e agindo com base nela. A raça é um mero detalhe, que de certa forma determinou inicialmente sua marginalização social, mas não determina o comportamento dos indivíduos.
III. O depoimento de Jorge Amado parece ter como cerne a crítica ao assim chamado "movimento negro" no Brasil. Uma multiplicidade de argumentos é listada por Amado, tendo como premissa básica a de que existiria uma "identidade brasileira", a qual seria fruto da mistura das três raças: branca, negra e índigena; a identidade "negra" em solo brasileiro seria uma ficção, não possuindo contrapartida na realidade nacional atual. Amado preocupa-se com possíveis desdobramentos racistas que poderiam advir de tais ideologias. Cita em sua defesa Gilberto Freyre, que teria, em "Casa Grande e Senzala", proposto um modelo de convivência entre as raças marcado por uma tendência à harmonização pela miscigenação. Amado parece temer que, opostos à visão legada por Freyre, movimentos sociais sem fundamentação histórica consistente possam, à custa de ficções ideológicas, ampliar-se e constituir-se em focos de ódio e instabilidade social.
A questão do racismo tomou triste importância no século passado, principalmente em conexão com as catastróficas consequências da ideologia nazista. As respostas da civilização ao racismo têm sido pautadas por duas vertentes; por um lado, a ciência tem-se encarregado de desmontar os mitos de "superioridade racial" e o da validade do próprio conceito de raça; por outro lado, a valorização das chamadas "sociedades abertas", conforme a expressão de Karl Popper, as quais são geralmente identificadas com ideais democráticos de liberdade e estado de direito, tendem a minimizar as condições para que o racismo prolifere em suas formas mais devastadoras. No caso das afirmações do texto de Jorge Amado, existem alguns pontos problemáticos ou pelo menos duvidosos. Amado parece implicar que a formação de identidades com base em raça, como quer que se a entenda, tem necessariamente conotações racistas. O estudo, mesmo que superficial, da história humana mostra que o conceito de raça é muito poderoso, e não há como "fazê-lo desaparecer" apenas com boa-vontade. Vemos, no entanto, que, embora as identidades raciais sejam onipresentes, o racismo, ao menos em suas formas mais explicitamente destrutivas, depende de uma conjunção bastante específica de fatores históricos.
No caso brasileiro, é ingenuidade supor que associações não existam, formal ou informalmente, entre brasileiros de origens étnicas comuns, sejam estas quais forem. É também implausível a noção de que movimentos sociais venham a ganhar força sem a contrapartida de um fenômeno social real que os alimente. As ideologias, importadas ou não, são meros intrumentos para a concretização de um anseio, e tendem a se ajustar dinamicamente aos fatos. Por fim, a posição de Jorge Amado, mesmo que supostamente motivada por um genuíno senso de brasilidade e um desejo legítimo de confraternização nacional, traz um preocupante elemento reacionário na medida em que desqualifica ou anatematiza a organização de grupos como mecanismo de defesa à opressão; de certa forma, essa postura, se generalizada, na medida em que tenta fragilizar esses grupos, constitui, ela sim, uma prática disfarçada de racismo.
Quanto ao argumento de Amado de que não existiria uma base biológica para a formação de uma identidade negra no Brasil, ele baseia-se em falsas premissas. A formação de identidades não depende necessariamente de afinidades biológicas rigidamente estabelecidas, mas baseia-se em construções culturais fundadas sobre signos diferenciadores compartilhados arbitrários (sinais diacríticos); um belo exemplo de como essas identidades são formadas encontra-se no estudo de Manuela Carneiro da Cunha, "Negros, Estrangeiros"; em seu capítulo "Brasileiros em Lagos", ela mostra como os brasileiros libertos emigrados à África no século 19 constituíram uma comunidade à parte, com seus valores e sua herança religiosa e cultural brasileiros, em oposição aos valores africanos; outro interessante estudo de caso de formação de identidade comum motivada pelas circunstâncias, entre pessoas de etnias diferentes, é o supracitado artigo de Robert Slenes, "Malungu, Ngoma vem!"; nele se vê como os escravos vindos de nações africanas distintas forjaram uma identidade comum, em resposta à sua condição comum de escravo. Em suma, as identidades sociais surgem como resposta a um contexto social específico, seja ele de opressão ou discriminação, seja da necessidade de convívio baseado em valores comuns.
Conclusão. Comparando os três textos citados, vemos que o pensamento de Gilberto Freyre faz sentir sua presença em todos, mesmo que em um deles (Schwarcz) seja como objeto de crítica. Seu modo de pensar a realidade brasileira teve consequências profundas, para o bem e para o mal, não só na obra de outros cientistas como no próprio modo como o brasileiro se vê e vê o país. A visão de Freyre fez bem à auto-estima nacional, de certa maneira, com sua abordagem até certo ponto anti-racista e inclusiva. Por outro lado, sua valorização de aspectos não-confrontacionais da relação entre os diversos segmentos sociais levou a uma distorção nos estudos sociológicos e históricos, os quais negligenciam o papel ativo dos indivíduos em situações de conflito; no âmbito mais amplo da sociedade, levou por vezes à alimentação de uma certa ideologia conciliadora e minimizadora desses mesmos conflitos, a qual pode se prestar à perpetuação de situações de opressão.